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COM OU SEM MIM

feminicídio

Por Paula Dione, psiquiatra, membro do Núcleo de Sexualidade da Holiste Psiquiatria

Mais de duzentos milhões de visualizações; essa é a cifra alcançada pelo hit “Com ou sem mim”, cuja letra fala de um indivíduo que, aparentemente, deseja apenas que o melhor aconteça na vida da parceira, ainda que isso custe a separação. Quem tiver curiosidade de ler alguns dos mais de 35 mil comentários do vídeo, encontrará pessoas concordando com a proposta (“é isso mesmo, quem ama deixa ir”), outros lastimando antigas dores de amor, e até mesmo uma provocação filosófica: “só quero que você seja INFELIZ, com ou sem mim”. Sinceridade em forma de pérolas da internet.

Final de relacionamento é um assunto palpitante e, portanto, recorrente em letras de músicas. Seja buscando tirar a mágoa do peito e colocar no papel (para ver se sara), seja buscando anunciar que deu a volta por cima (o que geralmente não se verifica), o que não falta é canção com esse tema.  O hit que intitula esse artigo, no entanto, veio com uma pitada inovadora: “…outro em meu lugar, se você quer colocar, te deixo livre pra viver”. Na prática, quantas pessoas são realmente capazes desse desapego? Quantos homens suportam ver a parceira seguindo em frente, dando e recebendo afeto de outra pessoa, e a deixam “livre pra viver”? A elevada frequência de crimes passionais sugere o contrário.

O processo de convivência dentro de um relacionamento afetivo demanda certa “demarcação de limites”, estabelecendo as normas para o comportamento de cada envolvido; a forma como esse processo se dará e os resultados dele variam consideravelmente de casal para casal. Levando em conta que, na sociedade em que vivemos, muitas vezes a mulher é tratada como “minoria” em relação à possibilidade de expressão, verifica-se que, em uma frequência muito maior do que gostaríamos de admitir, as regras são bastantes desiguais, tendendo a posicionar a mulher enquanto propriedade do homem. Uma vez enxergando o outro como objeto e estabelecida a relação de posse, a progressão da violência pode ser rápida, como temos visto nas recentes estatísticas sobre feminicídio: o “dono” não tolera desobediência.

O fato de ser um homem o intérprete da canção “Com ou sem mim” traz para o debate a possibilidade de o relacionamento afetivo estruturar-se em posicionamentos diferentes da objetificação e da posse. Apesar de a letra trazer uma mensagem ambígua (sugerindo que a parceira não vai encontrar alguém tão bom quanto ele), a mensagem que se repete no refrão remete à ideia do facultativo. Ao admitir a existência de duas alternativas (COM ou SEM), franqueia-se ao casal a possibilidade de optar, ou seja, legitima-se que o relacionamento afetivo deve ser, em essência, uma escolha. Há esperança.

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