O DSM, manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais editado pela Associação Psiquiátrica Americana, contava, em sua primeira edição (1952), com 106 doenças. A última edição lançada (2013) já apresentava 374 patologias. Ao lado daquelas já bastante conhecidas, como esquizofrenia, transtornos bipolares e depressão, surgiram novas doenças, como o Distúrbio de Hoarding, caracterizado pela acumulação compulsiva, e a “Skin Picking”, quando a pessoa “cutuca” a pele com frequência, provocando escoriações. Para além das críticas feitas, até por setores da própria psiquiatria, sobre a ferocidade classificatória que última edição do DSM revelou, me interessou refletir sobre a grande oferta de novos nomes para o sofrimento psíquico. Se no terreno da economia a oferta de um produto almeja gerar uma demanda pelo seu consumo, no campo da Saúde Mental essa lógica não tem se mostrado muito diferente.
Frequentemente, encontramos nos meios de comunicação matérias que abordam alguma patologia, antiga ou recém incorporada ao rol das doenças mentais, ilustradas pelo depoimento de alguma celebridade midiática afirmando sofrer daquela doença, abrindo o campo para as identificações que apaziguariam o mal estar de quem supostamente sente sintomas semelhantes. Freud, no texto Psicologia das Massas e Análise do Eu, fornece pistas para refletir sobre esse fenômeno, ao citar o exemplo de um grupo de moças que vivem em um internato. Ao receber uma carta de amor que lhe desperta ciúmes, uma das moças reage com uma crise de choro. Algumas amigas presentes reproduzem essa crise de choro em uma espécie de, nas palavras de Freud, “infecção psíquica por algo em comum”, pela via da identificação com o lugar da moça que recebe a carta. “O mecanismo é aquele da identificação baseada em querer ou poder colocar-se na mesma situação”, conclui.
Nos transportando para os dias atuais, um outro episódio ilustra essa questão. Em uma entrevista cedida a uma emissora de Hong Kong, onde usufruía de um status de pop star, a falecida princesa Diana revela que desenvolveu um quadro de anorexia por conta dos impasses sofridos em seu casamento. Subitamente, um surto de anorexia surgiu na cidade asiática, batizado por estudiosos de “anorexia me too”, ou “anorexia eu também”.
A grande oferta de nomes oriundos da ciência, dos quais o DSM é um pródigo porta voz no campo da Saúde Mental, por vezes aporta nos consultórios e serviços de tratamento através de sujeitos que chegam identificados a um autodiagnóstico. Essa condição oferece um certo apaziguamento de seu mal estar ao servir de passaporte para uma comunidade de pessoas unidas por um sofrimento e que atende por um nome comum: borderline anônimos, bipolares anônimos, bulímicos anônimos. No dicionário, a palavra “anônimo” significa “que não se quer dar a conhecer; sem nome, não assinado”. A nomeação coletiva dentro dessas comunidades leva a uma curiosa redundância: o nome para todos(bulímicos anônimos, bipolares anônimos, etc) que revela o “algo em comum” (comprar compulsivamente, usar drogas compulsivamente, amar compulsivamente…) pode manter no anonimato justamente o que há de singular no sofrimento psíquico. Essas comunidades formariam conjuntos de sujeitos uniformizados pelo nome para todos, antítese do nome próprio que identifica o sujeito.
Qual a função do nome “escolhido” em cada caso? Quais os usos que a pessoa faz de seu autodiagnóstico? Encontrar em outra pessoa, que ocupa um lugar idealizado, uma palavra que nomeie o nosso próprio mal estar é uma experiência que pode ser reconfortante, mas que pode nos alienar da parte que nos cabe no latifúndio do nosso sofrimento psíquico. Embora todos possam se servir do nome comum, como no exemplo da anorexia me too, os (des)caminhos que conduzem ao sofrimento são sempre individuais, à prova de soluções coletivas.
*André Dória é Mestre em Psicologia e Coordenador do Programa de Tratamento do Transtorno Bipolar da Holiste