Na abertura do primeiro Ciclo de Palestras da Holiste, evento que teve como objetivo proporcionar uma discussão mais ampla e abrangente sobre saúde mental, sociedade e cultura junto ao grande público, o psiquiatra Luiz Fernando Pedroso, diretor clínico da Holiste, destacou que a ciência não deve ser usada para manipulação política e ideológica da sociedade. Nesta entrevista, ele expõe o que pensa sobre assunto.
Revista Holiste – O senhor disse que a saúde mental é importante demais para estar nas mãos de médicos e psiquiatras e o que importa é discutir valores. A que valores o senhor se refere?
Luiz Fernando Pedroso – Durante as últimas décadas, a psiquiatria se envolveu em muita conversa sobre neurotransmissores, farmacologia e um monte de assuntos técnicos. Foi um período que esqueceram que a psiquiatria não é – e nunca foi – algo essencialmente técnico. Ela é maior que isso. É biológica, psicológica, faz interface com o social, com o cultural, com o antropológico. Independente de você ser uma pessoa de formação mais ou menos técnica, não pode ser uma pessoa despolitizada, porque a técnica não tem vida própria. Ela está submetida e direcionada pelos valores que as pessoas têm. Estou falando de todas as áreas, seja jornalismo, economia ou a própria medicina. O que você faz com a técnica depende daquilo que você preza e dá importância, dos seus compromissos pessoais, sociais e profissionais. Mas, uma parte dos psiquiatras está fazendo política de forma dissimulada, expressando crenças ideológicas como se fossem técnicas. Meu discurso é contra essa visão tecnicista e pretensamente despolitizada que ronda algumas entidades médicas.
RH – O senhor está se referindo à gestão passada da Associação Brasileira de Psiquiatria e ao seu manifesto a favor da criminalização da maconha?
LFP – Principalmente. Eu não concordo com o papel que algumas associações corporativas, como a ABP, estão exercendo sobre a questão da criminalização das drogas. Fazer um discurso político travestido de discurso técnico é de um oportunismo indecente. Fazer uma política que não representa a diversidade da categoria, que não abre espaço para o contraditório, para o pluralismo de ideias, não me parece ser a postura adequada para uma entidade que deve representar uma categoria profissional.
Revista Holiste – Na gestão passada, a ABP se posicionou a favor da proibição das drogas. O senhor não concorda com esse posicionamento?
LFP – Nem sempre o que pode fazer mal deve ser proibido pelo governo. Se uma determinada droga pode ou não comprometer a saúde de alguém é uma discussão que, sem dúvida, deve se dar no campo técnico. Então são examinados os estudos e as pesquisas, mas sempre de forma crítica porque invariavelmente elas contêm muitos vieses. Outra coisa é o que fazer com esse conhecimento, em particular o papel do governo; aí a conversa vai além da técnica, é política. O que eu estou discutindo é o meu ponto de vista sobre como isso deve ser abordado num contexto democrático. Para começar, quem combate droga é a polícia e não o profissional de saúde mental, pois a este cabe lidar com a dependência química, que é um fenômeno psíquico muito mais complexo. O tratamento da dependência química não se confunde com a guerra às drogas, por isso estranhei quando uma entidade médica começou a fazer esse discurso de polícia. Uma entidade tão importante como a ABP precisa, sobretudo, expressar a pluralidade dos seus representados e não fazer um aparelhamento para promover uma ideologia e um posicionamento político de poucos. Os psiquiatras formam uma categoria ampla, multifacetada e plural, com profissionais de diferentes ideologias, religiões e pontos de vista. A ABP não pode fazer uma política que não represente essa diversidade da categoria.
Revista Holiste – O senhor também se posiciona contra outras medidas proibicionistas, como a proibição do sal em restaurantes da cidade de São Paulo?
LFP – Usei isso apenas como exemplo de uma aberração política sustentada numa pseudociência, até porque o que faz mal e o que faz bem é relativo. A própria droga que mata também pode se transformar num remédio, pois, como já dizia o famoso médico Paracelso, no século XV, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Além disso, não podemos delegar ao estado a tutela da sociedade. Precisamos aprender a resolver as coisas pela democracia, pela liberdade, pelo respeito ao direito de escolha de cada um. Se algo pode fazer mal, então temos que informar, mas deixar que as pessoas escolham seus caminhos. A imposição de medidas para controlar nossas vidas e interferir em nosso livre arbítrio é autoritarismo e nos relega, todos, a uma cidadania de segunda classe.
Revista Holiste – Mas, e o respaldo médico e científico por trás dessas medidas?
LFP – Pesquisas servem para fazer a gente pensar, pois ciência é o exercício da dúvida, do contraditório, da possibilidade do desmentido, da refutabilidade. Quando ela passa a ser apropriada pela burocracia estatal, vira uma religião positivista e passa a ser mais um instrumento de dominação e controle. Em nome de um respaldo científico criam-se protocolos e regras como se fossem verdades absolutas a serem obedecidas por todos. Imagine pensar que o sal, agora, deixa de ser uma recomendação médica para ser uma determinação burocrática.
Revista Holiste – Então o senhor vê essas medidas mais como um oportunismo populista do que uma solução real de problemas?
LFP – Podemos resolver os problemas por vários caminhos e o autoritarismo pode ser um deles, mas nunca terá meu apoio. Eu vivi isso na época da ditadura militar contra a qual militei e, por isso, tive de interromper meu curso de medicina por três anos, tempo em que passei na clandestinidade. Vivi muito intensamente o período Geisel, que se destacou pelo gigantismo do Estado, mas que não foi nada comparado ao que foram esses últimos anos de política católico petista. O que vimos recentemente foi um período Geisel multiplicado que, na época, já denunciávamos como tendo um cunho fascista. Isso foi reeditado com toda a força e, junto, vieram essas medidas populistas que, sempre alegando um suposto saber científico, começaram a tolher a nossa liberdade.
Revista Holiste – O senhor defende, então, que a solução deve ser conduzida mais pelo cidadão e menos pelo Estado?
LFP – É mais moderno, criativo, eficaz, barato e respeitoso solucionar os problemas pela democracia. Drogas, assim como armas e outros objetos inanimados, não têm vida própria, depende do que as pessoas fazem com elas. Dizer que alguma coisa é um mal em si não passa de um álibi para, em cima disso, criar uma legislação proibicionista, suprimir a liberdade e restringir a cidadania. Além disso, um decreto desses tem de ser regulamentado, requer milhares de reuniões e comissões, e a contratação de outros tantos milhares de gestores e fiscais no funcionalismo público. Isso só vai agigantando o Estado, tornando-o mais caro, mais corrupto e mais demandante de impostos para, afinal, tutelar o cidadão como se ele fosse um incapaz, um hipossuficiente ou uma criança.
Revista Holiste – Dentro desse contexto, como a psiquiatria entende o conceito defendido por alguns filósofos, como Luiz Felipe Pondé, de que não há consenso se o homem é ou não responsável pelo que ele faz em sua plenitude?
LFP – Na abordagem das doenças mentais a gente tem um trabalho muito incisivo, muito forte, no sentido de as pessoas assumirem responsabilidade pelas suas vidas e pelos seus atos. Muitas doenças, por exemplo, já são determinadas geneticamente; ou seja, não temos tanta autodeterminação e capacidade de escolha em relação ao nosso destino como supomos e até gostaríamos. Porém, sempre sobra um espaço para o livre arbítrio e para autodeterminação, e esse espaço tem de ser ocupado. Em relação às drogas, por exemplo, sabemos que a dependência química é um transtorno, é uma doença, mas jamais pode ser um álibi para eximir de responsabilidade aquele que bebe ou se droga compulsivamente. Na verdade, é o contrário. Por ele ser um dependente químico é que ele não pode beber e nem usar drogas. As pessoas normais podem, os dependentes não. E eles têm que ter essa noção de responsabilidade.
Revista Holiste – O objetivo da psiquiatria, então, é contribuir para que as pessoas não se escondam atrás de doenças, se isentando de suas responsabilidades?
LFP – Também. É muito difícil tratar pessoas infantilizadas. Infelizmente, a cultura paternalista e assistencialista ainda está presente em nossa sociedade, inclusive em muitos ambientes corporativos. Atendo na clínica muitos funcionários de empresas diversas e dá para ver, nitidamente, como é a cultura da empresa pelo perfil do paciente. É muito diferente tratar uma população profissionalmente desmotivada, encostada em empresas ineficientes ou repartições públicas inúteis, com uma cultura de muitos direitos e pouca responsabilidade, daqueles comprometidos com suas carreiras e que estão buscando sua autonomia profissional e financeira. Essa quer ficar logo boa porque tem o que fazer na vida, enquanto a outra quer se beneficiar da doença para se aposentar precocemente e viver “encostada”.
Revista Holiste – Então, quanto mais responsabilidade e autonomia tiver o indivíduo, melhor para todos?
LFP – Sim. Mas a responsabilidade tem que ser nossa e não do governo ou qualquer tipo de “painho”. Quem tem que decidir se o indivíduo vai comer sal ou não é ele mesmo, e não o governo ou um protocolo burocrático. A liberdade é um valor que precisamos resgatar.