Em artigo publicado no jornal A Tarde, a psiquiatra Paula Dione fala sobre o necessário equilíbrio entre responsabilização e compreensão do paciente com transtorno mental, por parte da família e da sociedade.
Além da queda, o coice. A canção “Vá trabalhar”, de Arnaldo Antunes, retrata um personagem que, a despeito de suas angústias, recebe a seguinte frase: “esse buraco foi você quem cavou, esse buraco onde você se enfiou”. Em outras palavras, um dedo em riste apontado para o indivíduo, intimando-o a assumir a parte que lhe cabe no latifúndio da responsabilidade por suas mazelas. Essa fala nos remete a certos procedimentos que fazem parte do processo terapêutico na psicologia e psiquiatria.
O processo de auto-implicação nas atitudes que conduzem aos sucessos e insucessos da vida costuma ser algo complexo e doloroso. Se, por um lado, a maioria das pessoas afirma desejar a liberdade de escolha, por outro, temos o fato de que ser responsabilizado pela consequência das nossas decisões (ou da falta delas) não é algo fácil, sobretudo nos desfechos indesejados. Segundo o dito popular, “filho feio não tem pai”. E agora? Quanto se pode esperar de implicação pessoal em portadores de patologias que afetam funções psíquicas como tomada de decisão e insight?
A relação existente entre exercício do livre-arbítrio e responsabilidade é algo complexo por si, tanto do ponto de vista jurídico quanto social. Essa complexidade se torna ainda maior quando trazemos esse olhar para os portadores de transtornos mentais, uma vez que muitas perguntas permanecem sem resposta. Em que medida pode-se exigir do portador de transtorno mental que ele seja responsável pelo seu próprio cuidado? Como determinar o grau de autonomia que o portador de Transtorno Afetivo Bipolar poderá exercer ao longo de sua vida, considerando que sua patologia se caracteriza pela ocorrência reincidente de episódios com tal desorganização psíquica que o mesmo pode ser considerado inimputável?
É notória a confusão dos familiares e dos profissionais que lidam com portadores de transtornos mentais quanto à questão da autonomia, não sendo incomum uma pessoa ser considerada “incapaz” no momento de ser colocada sob curatela, mas simultaneamente ser cobrada quanto às posturas que assume perante a família e a sociedade, a despeito da patologia presente. Diante de um cenário em que os limites entre a falta de implicação individual e a necessidade de melhor compreensão da apresentação dos distúrbios ainda são nebulosos, faz-se importantíssimo o papel do psiquiatra enquanto agente de informação. Através do estudo abrangente de cada caso, à luz do conhecimento científico, será possível elaborar a melhor forma de conduzir cada situação, sem responsabilizar o portador de transtorno mental pela infelicidade, nem tutelá-lo excessivamente, mantendo-o às margens da responsabilização.