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NOTÍCIAS - Um mês depois, Santa Maria pode ter deixado 20 mil com doença mental, diz psiquiatra

Agora é o momento de ajudar de fato a população atingida pelo incêndio em Santa Maria (RS), segundo o psiquiatra paulistano José Toufic Thomé, 66.

De acordo com ele, sem acompanhamento, até 20 mil habitantes da cidade podem ter doenças psiquiátricas em consequência da tragédia –que hoje faz um mês.

Vice-presidente do grupo de intervenção em desastres e crises da Associação Mundial de Psiquiatria, Thomé preside a unidade Brasil da Rede Ibero-americana de Eco bioética.

A rede criou um modelo de intervenção de longo prazo para os familiares das vítimas do incêndio na boate República Cromañon, em Buenos Aires, que matou 194 pessoas em 2004. Também deu assistência à população atingida pelas enchentes de 2008 no Vale do Itajaí, Santa Catarina.

Em entrevista à Folha, o psiquiatra diz que a população precisa de três anos de assistência médica e psicológica.

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Folha – Por que s.r. diz que o verdadeiro trabalho de assistência às vítimas do incêndio de Santa Maria ainda não começou?

José Toufic Tomé – Todos os voluntários foram para lá num momento de comoção, para ações pontuais, não coordenadas umas às outras. Um mês depois, a comoção passa, as notícias são outras e todos os danificados pela tragédia, que precisam de ajuda, ficam abandonados.

Há alguma estimativa de quantas pessoas foram atingidas pela tragédia?

Estatísticas da Unesco e da Associação Mundial de Psiquiatria mostram que cada danificado físico projeta o dano para 400 pessoas ligadas direta ou indiretamente a eles. Se temos 239 mortos em Santa Maria, são quase 100 mil pessoas.

Todas elas precisam de algum tipo de intervenção?

Um aspecto é: a cidade inteira precisa. Santa Maria tem 300 mil habitantes e funciona em torno de uma universidade –onde está a maioria dos atingidos. Mas há um outro aspecto. Estudos também mostram que, de todos os atingidos, 20% pode desenvolver algum tipo de patologia. Então são pelo menos 20 mil pessoas com sério risco de ter doenças.

Quais doenças?

Em alguns casos, a pessoa vai direto para a depressão e não sai. Mas muitas têm o que chamo de depressões mascaradas: síndrome do pânico, fobias, compulsões, adições, doenças psicossomáticas como gastrites, enxaquecas.

Isso é o chamado estresse pós-traumático?

Estresse pós-traumático é um diagnóstico muito genérico, foi fabricado por necessidade jurídica, para justificar indenizações. Mas a condição aparece com uma série de doenças simultâneas, que têm de ser tratadas. No caso de desastres e crises, é preciso um modelo especial de tratamento.

Como é esse modelo?

Envolve assistência em diferentes áreas: médica, psicológica, jurídica, educacional, por um período longo, idealmente três anos. E a capacitação dos profissionais envolvidos. Quando há um desastre, os cuidadores têm que lidar com outra concepção de trauma. Classicamente, o trauma é psíquico, está no campo da fantasia. Não é o caso. O trauma é real, se a pessoa fica com medo de ambientes fechados cheios de gente não é paranoia, não dá para patologizar.

Quando vira doença?

Quando a pessoa não enterra o morto, não elabora o luto, em linguagem psicanalítica. O luto demora no mínimo um ano para ser elaborado, porque a pessoa tem que passar por todas as datas significativas (início das aulas, aniversários, comemorações familiares) para fazer esse ciclo e se despedir. A intervenção que propomos é uma forma de ajudar essas pessoas a enterrarem seus mortos e a viverem suas vidas.

Como isso foi feito com as famílias atingidas pelo incêndio na boate Cromañon, em Buenos Aires?

Primeiro, fizemos um banco de dados de cada envolvido, com dados médicos, profissionais, familiares, situação jurídica. A questão das indenizações no caso da Argentina causa problemas até hoje.

As pessoas não foram indenizadas?

Não é só isso. Elas têm que receber apoio jurídico, mas não podem assumir o papel de vítimas, virar os representantes da catástrofe. Pode ser de interesse jurídico manter a tragédia viva, mas a pessoa vitimada vira refém da situação, passa a viver só em função do desastre.

O modelo de intervenção usado no caso argentino pode ser usado aqui?

O que funcionou muito e deveria ser feito no Brasil é a criação do banco de dados. O que não funcionou foi uma ação mais integrada com o governo. Não dá para trabalhar sem ele. Aqui, a proposta é fazer um acordo de trabalho para durar três anos, em que o poder público se responsabilize por sustentar as ações necessárias. Também aprendemos, na atuação em vários desastres e crises, que é preciso conscientizar as equipes das diversas áreas de que ninguém é dono da tragédia. O psicólogo não vai tirar o trabalho do médico, ou vice-versa, mas todos precisam conversar e criar uma malha interligada de apoio.

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