Em artigo publicado no jornal Correio, Luiz Fernando Pedroso, psiquiatra e Diretor Clínico da Holiste, analisou como a “PEC do Aborto” é um reflexo do autoritarismo estatal e uma ameaça às liberdades individuais.
A recente proposta antiaborto, que tramita em regime de urgência no congresso, reascende um debate que a muito tempo divide a sociedade e vai além das tradicionais fronteiras político partidárias entre direita e esquerda. Defensores pró e antiaborto estão presentes em ambos lados das trincheiras; porém, seus argumentos aparentemente antagônicos mostram uma incômoda semelhança.
As tentativas de endurecer a criminalização do aborto expõem um comportamento oportunista da direita de, através de sua agenda comportamental conservadora, afirmar supostas virtudes e ganhar espaço moral sobre uma esquerda combalida, perdida em bandeiras exóticas e carente de valores éticos. Porém, ao levar para o Estado as bandeiras religiosas com as quais mobiliza seus fiéis, a direita conservadora flerta com um Estado teocrático e contradiz a bandeira da liberdade da qual se diz porta voz.
Já a esquerda, comprometida com a agenda “woke” da qual o direito ao aborto faz parte, manifestou-se através de seu líder maior, o presidente Lula, que se declarou pessoalmente contra o aborto, mas o defendia por uma “questão de saúde pública”. Em outras palavras: na ausência de valores morais e oportunisticamente em cima do muro, lançou mão de argumentos supostamente técnicos para defender o aborto e não se indispor com sua base (igreja católica e universitários), claramente dividida sobre a questão.
Em que pese a diversidade presente em ambos espectros políticos, o aborto coloca em trincheiras diferentes gente muito semelhante: ativistas sociais que – em nome de deus, da ciência, ou de qualquer outra “força maior” – se autorizam a intervir na vida privada de outras pessoas, controlando seus comportamentos, desejos e motivações de fórum íntimo. Passa longe dessa gente a ideia de deixar cada um cuidar de sua vida como quiser, sem tutelas do governo, resguardados os limites da liberdade alheia.
A ideia de uma intervenção estatal no corpo de uma mulher, cerceando seu direito de livre escolha sob qualquer pretexto, é no mínimo controversa e nos leva a um debate infindável. Possíveis futuras “descobertas científicas” ou mesmo “inspirações” religiosas não substituirão os valores individuais de cada um, cuja diversidade é essencial para a democracia. Isso não desmerece o debate, o papel das igrejas, dos centros culturais seculares, etc.; mas, opiniões não devem ser impostas a ninguém (ainda que seguidas por muitos) sob forma de lei, em especial àqueles que delas discorde.
Como sempre acontece na vida real, esse autoritarismo do estado atinge somente os mais pobres. Afinal, ninguém imagina que uma mulher de posses, esclarecida, vá abrir mão de sua liberdade de escolha para que um juiz qualquer autorize algum procedimento em seu corpo. As soluções informais sempre foram a regra para elas e, mesmo para as mais legalistas, haverá sempre a alternativa de pegar um avião e realizar seus procedimentos, sem dificuldade ou burocracia, em algum país mais liberal.
Para os que dependem dos serviços públicos de saúde e, portanto, vivem sempre submissos e obrigados a pedir permissão a alguém para tocar suas vidas, o aborto não é simplesmente uma questão de saúde pública, como disse o Lula; mas, sobretudo, de afirmação de sua liberdade individual para que também possam escolher o que fazer com suas próprias vidas.
* Artigo publicado originalmente no jornal Correio: https://www.correio24horas.com.br/colunistas/artigo/o-aborto-da-liberdade-0724