Em artigo publicado no jornal A Tarde, André Dória, psicólogo da Holiste, aborda a relação concreta entre palavra e significado que se estabelece para o paciente com esquizofrenia.
A experiência da loucura, historicamente, é associada à estranheza e diferença. Entretanto, é no campo da linguagem que o louco se revela um transgressor, por estabelecer uma relação tão concreta com a palavra que nos causa espanto.
Escolhemos as palavras, pensamos antes de falar e tentamos ouvir nosso interlocutor para nos comunicarmos bem. Em As palavras e as coisas, Michel Foucault coloca em xeque a ideia de uma comunicação plena ao afirmar que, por mais que tentemos traduzir o que vemos, o que vemos não cabe no que dizemos. Quando adicionamos os lapsos e atos falhos, a partir da noção do inconsciente freudiano, percebemos que, de fato, não somos senhores da nossa própria fala. Há sempre algo que escapa, que não pode ser traduzido, tornando deficiente nossa relação com a palavra, uma inevitável distância entre ela e a coisa que tenta nomear.
Na loucura, essa distância é pulverizada e a palavra vira a própria coisa que ela nomeia. Um breve episódio ilustra a questão. “Você vê Faustão entre minhas pernas?”, me perguntou um esquizofrênico. “Por quê?”, respondi sem muita convicção. “Porque eu estava assistindo televisão e ouvi Faustão dizer: ô lôco meu!. Aí me tornei dele, e agora ele anda aqui comigo, entre minhas pernas”. Esse paciente, conhecido como o “louco” da família, identificou-se à palavra louco, que passou a se confundir com seu próprio ser. Não há distância entre ele e a palavra que o nomeia, como acontece quando recebemos um apelido. O apelido é uma forma carinhosa ou jocosa de sermos nomeados pelo outro, e por isso o relativizamos.
É a distância entre a palavra e o que ela tenta nomear que permite essa relativização. Nas psicoses, o sujeito pode “comer” a palavra ou ser “comido”, colando-se a ela. Essa cola foi descrita por Freud ao falar da palavra como coisa na esquizofrenia. Ao se nomear Jesus Cristo ou Napoleão Bonaparte, um psicótico, diferente de um neurótico, não se vê representado por esses nomes. Ele É esses nomes, algo vital em sua condição, mas que também pode representar o que há de mais solitário na experiência da loucura.
Antes de desistirmos dessa difícil interlocução, talvez possamos nos servir um pouco de Lacan e de Cervantes. O primeiro propôs que não deveríamos recuar diante da psicose, mas estar ao lado do psicótico, secretariando-o na tensa relação com um mundo cuja linguagem lhe é estranha. O segundo ilustrou involuntariamente esse secretariamento, com seu personagem Sancho Pança. Era para ele que Dom Quixote dizia ver dragões onde só havia moinhos de vento. A escuta foi a senha usada por Sancho Pança para acessar o mundo privado de Dom Quixote, e assim seguir ao seu lado. Como psicólogo, constato que essa senha perdura e parece não ter data para expirar.