O “ser” criança vem sofrendo uma série de modificações ao longo do tempo, ao ponto de sua representação atual ser muito diferente do que era a alguns anos atrás. São mudanças que, em primeira análise, parecem estar intimamente ligadas ao desenvolvimento da educação na sociedade e, principalmente, ao progresso da ciência e telecomunicações. Convivemos com crianças cada vez mais superlotadas de compromissos, vestindo-se e verbalizando como adultos, inseridas em um universo que, talvez, não lhe seja próprio.
Escutamos, em nossa prática clínica, o relato de filhos que dormem no mesmo quarto que os pais, inclusive na mesma cama. Quando questionamos os pais acerca da privacidade do casal, assim como daquilo que seus filhos possam escutar e ver, prontamente nos afirmam que seus filhos só dormem; logo não escutam ou vêm nada. Ao mesmo tempo, nos participam situações em que eles presenciam discussões e brigas familiares, principalmente as brigas de casal. Situações em que, sem escolha, crianças são inseridas dentro de contextos que não lhes dizem respeito. Inferimos, com isso, que existe uma espécie de intromissão e antecipação da posição adulta na criança. Mas, afinal, como se constitui o lugar da criança?
Partamos do princípio de que este, com toda certeza, não é o mesmo que lugar do adulto. Entretanto, para que a criança construa seu próprio lugar – suas defesas subjetivas, seu estilo de estar e se relacionar no mundo – é preciso passar pelo consentimento do desejo do outro, ou seja: do desejo dos pais. Por isso a responsabilidade também está com eles. É imprescindível que os pais apareçam para seus filhos, mesmo sendo compreensível que a atualidade os exija uma grande carga de trabalho fora de casa, o que os retira a possibilidade de estarem mais tempo junto aos filhos. Porém, mais que quantidade, o que realmente importa é a qualidade da relação que eles venham a construir entre si. Não é, portanto, dormindo numa mesma cama que os pais resolverão a questão.
Cabe citar que, no corpo a corpo entre adulto e criança, não há nada melhor que o brincar, sentar no chão e trocar experiências. Crianças precisam de atenção diferenciada, e na hora das brincadeiras os pais têm maior possibilidade de interagir com seus filhos, conversar, se divertir. Quem não se satisfaz com uma boa brincadeira? Freud interrogava se “acaso não poderíamos dizer que, ao brincar, toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou seja, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade?”. Ainda segundo ele, a criança cresce e pára de brincar após alguns anos de adaptação e esforço para encarar as realidades da vida. Pode até parecer que deixam de sentir prazer no brincar, mas, em verdade, a criança só abdica do elo com os objetos e jogos da infância e, ao invés de brincar, passa a fantasiar.
Para a psicanálise, a infância é um momento de estruturação psíquica, de constituição de um lugar. Sabemos, inclusive, que a realidade biológica do ser humano o coloca em uma posição de dependência de um outro, necessária para assegurar sua sobrevivência. Mas, esta dependência vai progressivamente desaparecendo. Para tanto, faz-se necessária a proteção e o olhar do adulto, ao mesmo tempo em que seja respeitada a autonomia da criança. Este é o momento, por exemplo, da criança começar a inventar formas de encarar os medos e fantasmas noturnos no seu próprio espaço, de começar a arrumar seus brinquedos, de descobrir formas de ir se posicionando sozinha frente a algumas situações na escola, em casa, entre amigos, assim por diante. Para que a criança sustente um lugar no mundo é preciso passar pelos cuidados do adulto, porém, com vistas a prescindir dele.
*Daniela Araújo é mestra em psicologia e psicóloga assistente da Holiste.