Dar sentido aos momentos da nossa vida é um dos grandes objetivos da psicanálise. O psicólogo Marcelo Magnelli fala sobre o tema fazendo referência ao clipe “This Is America”, que tornou-se um fenômeno na internet em todo mundo.
Confira o artigo publicado no Jornal A Tarde.
O cantor Childish Gambino causa, até hoje, uma grande agitação em toda a internet por ter lançado o clipe da música “This Is America”. Em apenas dois dias, o vídeo já contava com mais de 30 milhões de exibições. A Billboard acaba de elegê-lo um dos 10 melhores clipes do século XXI e vem alcançando o estatuto de obra de arte.
No videoclipe o cantor surge em primeiro plano, olhando para nós, em meio a pequenas caminhadas onde acontecimentos-chave ocorrem, normalmente disruptivos e violentos. Em segundo plano, outros eventos ocorrem sem que nos apercebamos claramente. Por duas vezes, o som inconfundível de tiros invade a cena, interrompendo o rap. Ao final, Gambino foge de uma multidão, em extrema angústia.
O que o vídeo quer nos mostrar? Por que captura nosso olhar? Por um lado, há uma dura crítica à violência historicamente impetrada aos negros e pobres nos Estados Unidos. Essa temática é um barril de pólvora no campo dos debates sociais em todo o mundo. Trata-se de dar voz às minorias, conferindo-lhes o poder de falar sobre seus sofrimentos e desejos. O sofrimento experimentado por essas pessoas, que muitas vezes permanece invisível, torna-se transparente para o grande público.
Por outro lado, o que é transmitido pela música ultrapassa o que acabamos de dizer. Prova disso é o sem-número de reportagens que tentam explicar cada elemento em cena: da calça utilizada pelo cantor ao motivo de existirem crianças com celulares nas mãos; busca-se interpretar o “Isso” ao que a América se reduz na perspectiva de Gambino. Algo do clipe provoca estranheza, convocando o espectador a tentar explicar este algo que o captura e que, de tão obscuro, rende diversos reactions propagados pelo Youtube.
O “Isso” de Isso é América não é tão claro assim, pois o “Isso” que se dá a ver de modo tão transparente – a crítica social americana à violência contra o negro -, guarda relação visceral com uma experiência opaca e que interroga incessantemente cada um de nós. A inquietante estranheza que nos habita, o “Isso” que permanece invisível ao olhar. Talvez por este motivo Gambino tenha se recusado a explicá-lo, argumentando que não é dele esta função, mas nossa.
A busca de cada espectador ao assistir This is America é a mesma que move cada um de nós em direção a uma psicanálise: dar sentido às cenas que marcam nossa história e nos fazem ser quem somos. É um trabalho que se tece na elaboração de interpretações dos nossos porquês, até o ponto de não conseguirmos falar bem, tangenciando um ponto de horror mais opaco às palavras. Trata-se, enfim, de tentar representar aquilo que é irrepresentável. Nesse preciso ponto reside a importância de sustentarmos um tratamento analítico: ele é um convite para falarmos sobre o que não sabemos.
CONFIRA O ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL A TARDE (11 de outubro)