As doenças e transtornos mentais atingem mais de 400 milhões de pessoas no mundo inteiro, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e cerca de 75% a 85% destas pessoas não têm acesso ao tratamento.
Idealizador de um cenário diferente, o psiquiatra Luiz Fernando Pedroso mostra como driblou preconceitos a partir do conceito de paciente cidadão para fazer da Holiste um case de sucesso.
Revista Holiste – Em um contexto desfavorável, com a luta antimanicomial em franca expansão, surge o Espaço Holos. Por quê?
Luiz Pedroso – Surgirmos em um momento de ataque à psiquiatria, com o propósito de reafirmá-la como especialidade médica legítima, importante e necessária. Em um cenário de lutas antipsiquiátricas, antimanicomiais, de hostilidade às práticas da psiquiatria, sobretudo por parte do poder público e dos psiquiatras que nele trabalham, tomamos a decisão ética e profissional de nadar contra a corrente. O governo fechou os hospitais, coibiu a eletroconvulsoterapia. O resultado é que hoje o paciente não consegue tratamento pelo SUS e, em surto, fica à mercê dos perigos das ruas ou do ambiente carcerário, em função dos eventuais crimes que cometa em decorrência da doença. Nós optamos pelo enfrentamento da estrutura burocrática, utilizando a internação e terapias de neuroestimulação como ferramentas no tratamento dos transtornos mentais, baseando nossas ações nos fundamentos da medicina, na liberdade do exercício da medicina e da relação médico/ paciente; deu certo.
RH – A que o senhor atribuiu esse sucesso?
LP – Nessa época, a psiquiatria vivia um momento de divisão ideológica, de correntes psicoterápicas e psicanalíticas de um lado, médicos de outro. Chegaram a ponto de dizer que quem medicava era de direita, e quem não medicava de esquerda. O profissional que usava a eletroconvulsoterapia era um ultradireitista. Diferente disso, nossa proposta sempre foi a de trilhar um caminho técnico, uma proposta integradora e não ideológica, onde o único compromisso é o bem estar do paciente. Da psicanálise às terapias de neuroestimulação, tudo se agrega para promover a recuperação psicossocial do indivíduo. Integramos várias linguagens.
Hoje, com a maturidade dessa proposta terapêutica, que agrega os diversos profissionais e especialidades em prol do paciente, vivemos uma situação curiosa: quem mais sugere a eletroconvulsoterapia no decorrer do tratamento são os nossos psicólogos. Eles necessitam interagir e conversar com o paciente, mas se o mesmo estiver fora de si, em um surto psicótico ou qualquer outro tipo de crise, isso não é possível. Para estabelecer uma conexão com o paciente, uma via onde o diálogo se torna possível, é preciso que ele recupere sua lucidez.
RH – Mas o paciente precisa estar internado para isso?
LP – Não, somente nos casos mais graves ou complicados. Hoje, cerca de 95% dos pacientes são bem atendidos em consultórios, mas, para os 5% restantes que precisam, a internação é vital, inclusive para salvar vidas, preservar patrimônios, carreiras profissionais e relacionamento familiares.
RH – De que forma a legislação contribuiu para a humanização dos hospitais psiquiátricos?
LFP – Não contribuiu em nada, isso é demagogia política. A legislação atual foi inspirada nos movimentos antipsiquiátricos e supostamente procurou proteger o paciente dos psiquiatras. Ora, os pacientes precisam ser protegidos é das doenças, e não dos profissionais que as combatem. O que desumanizou os hospitais, psiquiátricos e clínicos, foi o seu estrangulamento econômico. A grande maioria vivia do repasse de verbas do governo, que criava uma reserva de mercado para os donos de hospitais que agiam mancomunados com políticos e burocratas do próprio governo. Era uma espécie de capitalismo cartorial, como a gente vê hoje nas empreiteiras da Lava-jato. Era uma farra até meados dos anos 80. Então, quando o dinheiro público foi acabando, o governo foi reduzindo os pagamentos e, para se manterem economicamente viáveis, os hospitais tinham que estar sempre superlotados. Onde cabiam 100, colocavam-se 300 pacientes. Eu vi e vivi isso, eram duas e até três pessoas no mesmo leito. Quando a situação ficou escandalosa, o governo se eximiu da responsabilidade e passou a fechar hospitais que atendiam pelo SUS, agravando ainda mais a desassistência em saúde mental. Essa é a grande desumanidade.
Fora isso, temos que entender que a internação de um paciente é um ato médico, é regida por critérios técnicos muito específicos, e não por políticas populistas e demagógicas. Portanto, ela não deve seguir aquilo que o burocrata do governo define como “humanizado”, mas sim o que o psiquiatra acredita ter mais eficácia terapêutica para cumprir os seus propósitos.
RH – Mas, além da internação, existem outras alternativas de tratamento?
LP – Muitas. Já mencionei o tratamento ambulatorial, e ainda temos o tratamento em hospital dia psiquiátrico, o tratamento domiciliar e as interconsultorias em hospital geral. Contudo, prefiro pensar nelas como abordagens terapêuticas diversas e não como alternativas. Não dá para achar que um remédio é bom e o outro é ruim; eles têm finalidades e indicações distintas. Nosso hospital dia completou dois anos em setembro. Mas não o enxergamos como uma alternativa a nada, e sim como outro recurso de tratamento. Em relação à internação integral, ela é muito mais uma opção complementar do que substitutiva.
RH – O mesmo vale para o eletrochoque?
LP – A eletroconvulsoterapia também foi tomada por um viés político-ideológico enorme. No Brasil, associavam a terapia à tortura praticada pela ditadura militar. Mas, como ferramenta de tortura, ela é péssima, pois é indolor. A ‘demonização’ dessa terapia também decorreu do boom da indústria farmacêutica, que acabou mistificando o poder dos medicamentos. Hoje, com a quebra das patentes da maioria dos psicofármacos e a consequente redução dos investimentos em propaganda, percebe-se que os remédios não são nem metade do que prometiam ser, e a eletroconvulsoterapia continua sendo considerada um tratamento muito eficiente para algumas doenças. Podemos considerar a eletroconvulsoterapia um dos melhores instrumentos terapêuticos que existe.
RH – Isso custa caro…
LP – Saúde é caro mesmo. As políticas populistas tentam vender a saúde como uma coisa barata. Não há como fazer da saúde algo barato sem sucatear o sistema, sem queda de qualidade. Trabalho escravo é barato, mas sem qualidade. Isso tem a ver com o populismo do SUS, presente também nos planos de saúde, que se propõem a serem mais baratos por serem, supostamente, ‘melhores administrados’. Isso é uma falácia porque, para eles, combater o desperdício é criar dificuldades e impedir o acesso dos pacientes aos serviços, às novas técnicas, aos profissionais mais qualificados, aos novos medicamentos. Essa história do médico de família ou generalista, nesse sistema, é uma balela. É a distorção de uma utopia para justificar um profissional cujo papel é, na verdade, fazer uma triagem e bloquear o acesso a exames e especialistas. Isso não tem nada a ver com o exercício da verdadeira clínica geral, que é uma coisa muito difícil, de altíssima complexidade e que exige muito preparo do profissional.
RH – Mas o modelo do SUS não é elogiado, somente apresentando críticas à sua gestão?
LP – Esse é o discurso dos burocratas e demagogos. Tudo que é estatal é mal administrado: justiça, segurança, saneamento público… Tudo! Imagine a saúde? Porém, a questão principal é o caráter autoritário do modelo. Seja no SUS, seja nos planos privados (que realmente são melhores administrados que o SUS), a liberdade é sacrificada em nome da economia. Protocolos e regulamentações de toda ordem constrangem médicos e pacientes para determinar o que eles devem ou não fazer, que tratamento devem realizar, que exames pedir, que especialidade você deve seguir em sua carreira, aonde você pode abrir uma faculdade de medicina, ainda que privada, etc. Nesse modelo, o paciente só pode ter acesso ao especialista com a permissão do triador, ou seja: o paciente perde seu direito à livre escolha e à sua própria autodeterminação. Nosso povo não é tão apequenado assim que aceite prescindir da liberdade como um valor em nome de qualquer outra coisa. Como dizia um antigo líder político, nosso povo não é pequeno, ele está apenas agachado e um dia haverá de se levantar.
RH – Ainda assim, Barack Obama batalha hoje pela universalização do sistema público de saúde nos EUA, como já acontece aqui…
LP – Essa iniciativa do Obama é muito elogiada aqui, mas é bastante controversa lá. Somente 20%, da população americana não tem cobertura de saúde, e não a tem porque livre escolha. O sistema de saúde pública lá não é universal, como no Brasil, e dá cobertura somente aos carentes (Medicaid) e aos idosos (Medicare). O questionamento que eles fazem à proposta do Obama é que, com ela, o governo passa a obrigar as pessoas a terem um plano de saúde, mesmo que elas não queiram. Isso ofende o princípio básico da cultura norte-americana que é liberdade de escolha. Lá eles não aceitam que o estado passe a dizer o que é melhor para o cidadão, como ocorre aqui.
RH – A situação no Brasil é distinta. Temos um contingente considerável de pessoas com problemas de saúde mental sem atendimento ou sem condições de pagar para tê-lo. Como equacionar isso?
LP – Temos um problema psicoideológico. A gente gosta da pobreza alheia porque ela alimenta nosso altruismo católico. Parte considerável de nossa economia gira em torno dessa indústria de ajudar o próximo. As políticas paternalistas garantem nosso lugar no céu, por isso somos especialistas em produzir vítimas e desfavorecidos de toda ordem para justificar a indústria dos direitos, das ONGs, dos vales e das bolsas. A indústria da pobreza faz com que ela se reproduza, pois muita gente ganha com isso. Sofremos uma espécie de Síndrome de Porta Bandeiras que mantem um estado inchado, corrupto, caro e ineficiente.
A saída é gerar riqueza. É claro que é preciso ter uma cobertura social para atender os carentes. Mas saindo da faixa de pobreza, o indivíduo deve se emancipar e ganhar plenitude como cidadão. Gosto da ideia do paciente cidadão, com autonomia, com possibilidade de livre escolha, com condições de procurar um médico de sua preferência e estabelecer com ele uma relação altiva, sem submissões paternalistas e sem intermediários. Ele deve custear diretamento seu tratamento e buscar financiamentos que não interfiram em suas escolha nem em sua autonomia. Existem seguros e planos de saúde com essa proposta, eles não inteferem na relação médico paciente, usam a coparticipação como regulador financeiro do sistema, ninguém tem de ficar dando satisfação a burocratas.
O SUS deveria se concentrar no atendimento dos carentes, que é o que ele faz de fato, mas sem ter a pretensão de ser universal. Deve-se deixar que o mercado regule preços, que as pessoas estabeleçam competições, que um faça medicina de elite e o outro, popular. Isso abriria espaço para todos. Tudo que é único é autoritário e o que precisamos discutir no Brasil é a pluralidade, é o aumento de possibilidades, é a liberdade.
RH – Mas como fica a cidadania? O acesso ao tratamento, por exemplo, do usuário de drogas? Como lidar com o problema?
LFP – Com responsabilidade individual. A democracia pressupõe a cidadania responsável onde as pessoas assumam as consequências de suas ações. Vale considerar que a grande maioria delas pode usar drogas sem problema, mas os dependentes químicos não. É como o açúcar. A maioria pode consumir, os diabéticos, não. As políticas antidrogas tratam toda a sociedade como incapaz. Essa proibição não só ofende a cidadania, como cria uma reserva de mercado para o tráfico. Além disso, a proibição mistifica o problema, demoniza a droga, não informa a partir de pressupostos técnicos, nem lida com a responsabilidade individual do dependente químico. A base de todo tratamento é o chamamento do dependente à sua responsabilidade de se manter abstêmio.
Trabalhamos na Holiste com casos graves de drogadição. Temos um serviço de resgate e internação involuntária. Ao mesmo tempo, somos completamente a favor da descriminalização das drogas. As pessoas têm de escolher o que elas querem para suas vidas e não o governo. O indivíduo não deve pagar imposto para o Estado ser mãe nem pai de ninguém. A intervenção nesses casos só cabe quando o drogadicto perde a razão, a autonomia, a capacidade de decisão. E, paradoxalmente, nesses casos, as cracolâncias são um grande exemplo de omissão do poder público. O governo é leniente, não tem autoridade moral para usar a repressão policial onde ela é necessária, como por exemplo para impedir crimes e a degradação dos espaços públicos, e tão pouco para intervir em socorro aos incapacitados. Há uma enorme confusão de parâmetros e falta de referências.
RH – Mas a internação involuntária não viola a liberdade individual? A cidadania?
Pelo contrário. O psiquiatra não é um carcereiro, muito menos um profissional autoritário. Esse tipo de internação só ocorre quando o paciente está dominado pela doença e incapaz de se autodeterminar. Ele fica prisioneiro da sua própria insanidade. Portanto, nosso trabalho é libertador, é o que livra o indivíduo da doença, ajudando-o a recuperar sua liberdade psíquica, sua capacidade de escolha e de autodeterminação, para que volte a exercer sua cidadania de forma plena.
Nesse tipo de abordagem, costumo dizer que trabalhamos no limite entre a terapêutica e o crime hediondo, pois mantemos um adulto confinado numa clínica sem a anuência dele. Se eu não tiver um diagnóstico, uma explicação médica que justifique isso, estou cometendo um crime de cárcere privado. Por isso, só posso intervir quando o indivíduo já não responde por si, quando já perdeu sua capacidade de autodeterminação e está prisioneiro de uma compulsão, colocando a própria vida ou a de terceiros em risco. Nessa situação, já não há possibilidade de livre escolha. Esse é o critério para esse tipo de internação. Se ele estiver capaz, tem de responder pelos seus atos, inclusive criminalmente.
Ao contrário do senso comum, a internação involuntária, se aplicada corretamente, é um instrumento de resgate da cidadania, de libertação e responsabilização, jamais uma medida autoritária de coerção e supressão dos direitos individuais. O respeito à individualidade de cada um é um dos nossos principais diferenciais.
RH – Isso foi determinante para o crescimentos nesses 15 anos?
LFP – Sim, porque crescemos a partir da afirmação dos nossos valores. Nunca aceitamos abrir mão deles para obter ganhos de quaisquer especie. Ao contrário, nosso crescimento foi consequencia direta da firmeza com que os defendemos.
Começamos o projeto da nova sede há cerca de seis anos e enfrentamos burocracias de toda ordem, inclusive do ponto de vista legal, já que a insegurança jurídica de Salvador é enorme, com mudanças nas regras de PDDU etc. Foram anos lutando contra a prefeitura para conseguir aprovar o projeto, uma infinidadede alvarás, etc. Foram mais de dois anos aguardando financiamento e enfrentando diariamente uma maratona burocrática para ministrarmos medicamentos. É uma verdadeira república dos alvarás. Termos sobrevivido a isso é um milagre. Crescemos porque os pacientes acreditaram em nosso trabalho e resolveram investir em sua saúde. São eles que nos animam e nos fortalecem.
RH – E o que os levou a investir sempre mais?
LFP – Eu costumo dizer que a Holiste é mais que um projeto médico. Ela é também um projeto político, de natureza liberal. É a realização de uma visão de mundo e da psiquiatria. É também uma afirmação em defesa da pluralidade e do direito de ser diferente. Como a liberdade é o nosso valor maior, repudiamos as visões paternalistas na área médica, reafirmamos nosso compromisso com o exercício liberal da medicina e com o respeito à cidadania plena dos nossos pacientes. Temos nossos princípios e deixamos claro o que pensamos. Acreditamos que o médico deve ser um profissional autônomo comprometido apenas com seu paciente, e não com interesses de terceiros, sejam de empresários, de políticos, de convênios ou de laboratórios. Na Holiste toda a equipe técnica é de parceiros autônomos. Queremos fazer parte de um mundo plural, sem tutelas e com aumento de oportunidades para o exercício pleno da livre escolha por parte de profissionais e pacientes.