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Realengo, uma semana depois

Por que discutir desarmamento e ignorar a saúde mental?

Uma semana depois da tragédia de Realengo, o foco do debate sobre o que fazer para evitar que ela se repita continua deslocado. Gastamos muita energia discutindo desarmamento e quase nenhuma discutindo saúde mental. Sou da paz. Quanto menos armas circularem livremente pelo país, melhor. Desta vez, no entanto, elas não são o ponto fundamental.

O gatilho do massacre de Realengo foi uma mente perturbada. Se não tivesse fácil acesso aos revólveres, Wellington Menezes de Oliveira poderia ter colocado uma bomba na escola. Ou, quem sabe, lançado um aviãozinho sobre o prédio (se tivesse dinheiro suficente para concretizar seus delírios de grandeza inspirados pelo ataque terrorista às Torres Gêmeas).

Também não faz sentido insistir em medidas espetaculosas como instalar detector de metais em escolas. Esse tipo de providência garante uma falsa sensação de segurança, mas não atinge o essencial. Pessoas como Wellington podem promover ataques no metrô, em shows, em estádios de futebol, nas ruas mais movimentadas. O rapaz voltou à cena escolar porque pretendia se vingar das humilhações que dizia ter sofrido ali. E se as humilhações tivessem ocorrido em outro lugar? Teria adiantado instalar detector de metais e fechar a escola para a comunidade?

A questão essencial é que Wellington não soube lidar com a humilhação. Muitas pessoas são ridicularizadas nas escolas e, nem por isso, reagem como ele reagiu. O bullying não é bom para ninguém e pode deixar marcas profundas. Felizmente, a maioria das pessoas consegue mobilizar recursos internos ou externos para superá-lo. Por que Wellington não conseguiu?

Não conseguiu porque foi abandonado à própria sorte. Muitas pessoas perceberam que ele dava sinais de perturbação. Antes de qualquer coisa, Wellington precisava de atenção psicológica e psiquiátrica. Segundo um irmão que prefere não se identificar, ele teria passado por algumas poucas sessões de psicoterapia por recomendação da própria escola. Depois de algum tempo, teria se recusado a continuar.

Com a morte da mãe adotiva, Wellington ficou sozinho no mundo. Sem amigos, sem familiares por perto, sem esperança de reconciliação com a vida em sociedade, tramou a vingança durante longos meses. O isolamento social contribui fortemente para a insanidade mental. Sem uma pessoa por perto para dizer que interpretava a realidade de forma errônea e estava embarcando num delírio, Wellington tornou-se um terrível algoz. É preciso dizer, porém, que antes de tudo ele foi vítima. “Esse rapaz foi vítima de desassistência e omissão, uma situação que não é incomum”, diz Valentim Gentil, diretor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo. “Se os conflitos dele tivessem sido resolvidos, é possível que esse desfecho fosse evitado”.

Onde alguém encontra ajuda no SUS para resolver seus conflitos? A política de saúde mental e de atendimento a dependentes químicos do Ministério da Saúde está montada de tal forma que a atenção psicológica e psiquiátrica está totalmente aquém das necessidades da população.

Mesmo que a família ou os vizinhos tivessem tentado levar Wellington ao psiquiatra é possível que tivessem dado com a cara na porta. “A população deveria poder ir a um posto de saúde e encontrar um psiquiatra lá. Não conheço nenhum que tenha”, diz Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Se o posto de saúde não resolve, a família teria então que procurar um pronto-socorro? Outra miragem. A grande maioria não dispõe de equipes especializadas. Os poucos serviços com gente capacitada a prestar atendimento de saúde mental vivem constantemente lotados. Além disso, não têm para onde encaminhar os pacientes que precisam de atendimento hospitalar.

Uma pesquisa realizada no município de São Paulo em 2005 dá a dimensão de um problema que é nacional. Mais de 40% dos pedidos de internação não puderam ser atendidos por falta de leitos em hospitais psiquiátricos. As dificuldades das famílias em encontrar atendimento para seus doentes foram corajosamente narradas pelo poeta Ferreira Gullar em uma reportagem publicada por ÉPOCA.

Por outro lado, muitas das emergências psiquiátricas decorrem da falta de atendimento ambulatorial efetivo. Se existissem ambulatórios psiquiátricos com profissionais e recursos suficientes para atender corretamente à demanda, talvez muitos doentes não chegariam ao ponto de precisar de uma internação.

Como ambulatórios psiquiátricos são raridade dentro do nosso sistema de saúde, o paciente acaba atendido por médicos generalistas que não são treinados para diagnosticar e tratar sequer os transtornos mentais comuns de crianças a idosos.

Se não desistir de buscar ajuda depois de tantas idas e vindas, a família costuma bater às portas dos hospitais universitários. Eles prestam um bom serviço, mas, obviamente, estão sempre sobrecarregados. “Hoje na cidade de São Paulo há entre 25 e 40 pessoas aguardando vaga para internação nos pronto-socorros. Ficam amarradas, esperando aparecer um leito em algum lugar”, diz Gentil.

Nos últimos 20 anos, cerca de 70% dos leitos psiquiátricos do país foram fechados. A política adotada pelo Ministério da Saúde prevê que os doentes sejam atendidos em Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Nesses locais, o paciente recebe medicação e acompanhamento semanal. A ideia é atendê-lo sem retirá-lo do convívio da família e da comunidade. Segundo essa orientação, mesmo nos momentos de crise o doente deve ser atendido nos Caps. Ele passaria alguns dias internado na própria instituição (ou em hospitais comuns, com alas psiquiátricas) e depois voltaria para casa.

“Uma pessoa que busque atendimento de saúde mental para um familiar pode se dirigir diretamente a um CAPS. Ela será acolhida e, caso o CAPS não tiver expertise para atender o caso, o paciente será encaminhado a outro lugar”, diz Roberto Tykanori, coordenador da área técnica de saúde mental do Ministério da Saúde.  Na prática a coisa é mais complicada. No Rio de Janeiro, há apenas um CAPS.

Por Cristiane Segatto

Revista época, 15/04/2011