Em artigo publicado no jornal Correio, André Dória, psicólogo da Holiste, aborda os limites e as potencialidades da psicoeducação.
Cazuza, um dos maiores compositores de sua geração, é descrito como bipolar em alguns sites e publicações. Versos como “nunca viram ninguém triste, por que não me deixam em paz?” e “canibais de nós mesmos, antes que a terra nos coma”, traduziriam os episódios característicos de depressão e euforia. Em outra canção, o poeta escreve que “raspas e restos, me interessam”, e é particularmente disso que esse texto se ocupa.
A psicoeducação é um dos recursos mais utilizados no tratamento do transtorno bipolar. Consiste em promover o entendimento, por parte do paciente, das características da euforia, da depressão e dos hábitos de cada um que podem deflagrar novas crises, evitando recaídas. Não perder noites de sono, não utilizar substâncias psicoativas e fazer exercícios físicos são algumas das orientações mais recorrentes.
Uma experiência em um grupo terapêutico com pacientes com transtorno bipolar foi marcante para pensar o que escapa à psicoeducação. Ao ser perguntado sobre os motivos que o levou a estar naquele grupo, um participante respondeu: “descaração”. Ele disse saber o que deveria fazer para evitar uma nova crise, mas, ainda assim, arriscou. Perdeu noites de sono em farras que fariam corar Baco, deus romano do prazer.
Esse episódio remete a uma entrevista do psicanalista Jacques Alain Miller ao jornal francês Liberation, em abril de 2005, em que dizia ser um erro psicológico e filosófico acreditar que a informação determina a decisão. Em outras palavras, como anteviu Freud, é impossível educar a pulsão. Se essa fosse uma condição possível, não transar sem camisinha, não beber e dirigir, não fumar para não ter câncer, seriam imperativos que, levados a cabo, zerariam os índices de gravidez na adolescência, de acidentes de trânsito e de câncer decorrentes do hábito de fumar. Essa pedagogia da pulsão parte do pressuposto de que o que é aprendido domestica a pulsão na hora “H”.
Descrente do ideal normativo das pulsões, interessa ao psicanalista aquilo que fracassa: a “descaração”, raspas e restos inaudíveis do discurso do paciente, que aponta para o calcanhar de Aquiles da psicoeducação. A ideia de que o saber pode promover o autocontrole encerra uma noção determinista entre causa e efeito, posta em xeque pela descoberta freudiana do inconsciente. Entre causa e efeito, há uma hiância de saber que desafia a lógica cartesiana da qual a psicoeducação descende. É justamente nesse não saber, na surpresa, nomeada como “descaração”, por exemplo, que reside nosso ponto de interesse na prática com nossos pacientes. Por fim, a crítica à clínica pedagogizada, aqui inspirada pelos versos de Cazuza, encontra ressonância na ideia freudiana de que onde quer que estejamos, um poeta já esteve antes de nós.