O craving (ou fissura) é um comportamento que está relacionado ao forte desejo de repetir uma experiência relacionada ao consumo de determinadas substâncias, desde alimentos, como o chocolate, até drogas psicoativas, como álcool, crack ou heroína
As pupilas se dilatam. Uma inquietação enorme começa a tomar conta do corpo, seguida de irritação e muito nervosismo; quem nunca passou por um momento de fissura que atire a primeira pedra. Seja um desejo intenso por uma comida, uma vontade grande de comprar algo que não caiba no orçamento, a incapacidade de parar de jogar em um cassino mesmo após perder grandes somas de dinheiro; todos esses comportamentos estão relacionados à fissura.
Agora, vamos exponenciar essa sensação, imaginando um dependente químico. “É involuntário. Muitas vezes surge simplesmente. Há casos de pessoas que já passaram pelo processo de abstinência, tem mais de um ano sem usar droga, mas algum “gatilho”, como uma cena na televisão ou algo que alguém fale, faz com que desperte um desejo intenso pela droga. O pensamento se torna tão fixo que se manifesta no corpo, embrulhando o estômago, causando tonturas e alucinações, por exemplo”, descreve o psicólogo Pablo Sauce, coordenador do Programa de Dependência Química da Holiste (PDQ). Essa sensação é denominada pelo termo inglês craving ou, no nosso bom português, fissura. Vocábulo que, por sinal, não é aprovado pelo psiquiatra Dr. Luiz Guimarães. “A tradução para a nossa língua não faz jus à relação com os hábitos aditivos. Prefiro a palavra em inglês, craving, quando nos referimos à compulsão pelo uso de álcool ou drogas, além do fato de encontramos mais respaldo na literatura técnica internacional”, explica, complementando que “o termo diz respeito não somente ao desejo e à intenção de realizá-lo, mas à antecipação dos efeitos com a utilização e do alívio dos sintomas relacionados à abstinência”.
O primeiro gole
No geral, esse desejo, de diferentes intensidades, está associado ao uso de drogas lícitas ou ilícitas, mas também pode estar ligado a jogos, compras, sexo compulsivo e até comida. Isso acontece porque o craving está intimamente ligado à memória: aquele primeiro momento em que se sente algo prazeroso é marcado no cérebro como algo bom e que deve ser repetido. “Não se sente fissura se você nunca tiver usado droga ou vivido a situação. Ela é desencadeada pós-uso. É uma associação mental do prazer registrada como afeto e satisfação”, explica Sauce. Ele também pondera que a fissura se manifesta de diferentes formas e intensidades em cada pessoa. “Há uma relação entre constância do uso, periodicidade e potência, e também fatores individuais. Alguns possuem maior susceptibilidade biológica/ sociocultural do que outros ao entrar em contato com determinado comportamento ou substância.”
Boom
“Quando o paciente apresenta o craving, não significa que ele vá recair. Porém, nós, que trabalhamos com dependência química, sabemos o quanto ele influencia a retomada do uso das drogas”, fala o psiquiatra Luiz Guimarães. Para facilitar o entendimento, podemos imaginar um soldado com um detonador de um míssil teleguiado com alto poder destrutivo em mãos, que tem o poder de acertar e aniquilar um alvo específico a milhares de quilômetros. O craving, no caso, é a vontade de acionar o detonador, mesmo em tempos de paz. “É uma questão de segundos, de apertar um botão e detonar na cabeça o consentimento à fissura. Por isso é tão importante entender esse fenômeno e desenvolver táticas para o manejo dos pacientes nesse estágio, seja na internação ou no acompanhamento ambulatorial”, complementa. “Se a vontade se instala e o paciente consente e alimenta o pressuposto de que só a droga é que trará satisfação, se deixando levar pela ideia e não fazendo nada para se desviar do caminho, ele está a um passo de uma recaída emocional. Todo o trabalho terapêutico se concentra entre a ideia – seja pela memória, lembrança, conversa ou situação – e a decisão. O exercício da busca de algo que se coloque no intervalo entre a concepção e o ato que traga a satisfação de outra maneira. A pausa para não se deixar cair escravo”, detalha Pablo Sauce.
Para Ueliton Pereira, também psicólogo do PDQ, a munição do míssil vem de sentimentos como irritabilidade, ansiedade e inquietação. “Eles são disparadores do craving. Há uma relação direta entre o estresse e a fissura. O paciente, ao se expor à situação de estresse, favorece muito a fissura”, afirma. Ueliton enfatiza a dificuldade de diferenciar a fissura da abstinência, ansiedade pura ou aquela que está ligada à falta da droga. “A abstinência produz sintomas físicos ligados diretamente à falta específica da substância química. O craving é algo manifestado pelo pensamento, não tendo a ver com substâncias. É como se fosse uma resposta mental da dependência. Assim, não aparece de forma igual em todos, variando, também, de acordo com a substância da adição. O usuário de álcool, por exemplo, possui sintomas diferentes da cocaína ou crack. É necessário identificar o perfil do paciente, em cada caso, para definir o tipo de fissura. Na Holiste, trabalhamos com todas as dependências químicas, causadas por drogas lícitas e ilícitas, além de outras adições como jogos, sexo, compras compulsivas, etc.”. Pablo Sauce complementa a explicação: “O paciente usuário de crack, por exemplo, fica muito receoso em dormir o sono atrasado de dias e acordar com a fissura, com uma ansiedade incontrolável. Nesse momento, é indicado recorrer à medicação como suporte para que ele consiga ficar mais calmo e conversar”.
No olho do furacão
Os budistas costumam comparar a mente humana com o comportamento de um macaco louco, que pula desenfreadamente de galho em galho. As imagens e pensamentos que invadem nossa mente a todo instante, sem controle, são o primata saltitante. Também podemos fazer uma analogia com um disco riscado, repetindo o mesmo ponto da música sem parar. O momento intenso de recaída do craving é exatamente isso. “Se o paciente acabou de chegar, saindo de um longo período de uso, não temos como trabalhar estratégias de prevenção do craving, porque a fissura é parte de um todo. A sensação é bem forte no corpo, e o paciente ainda não consegue pensar e refletir. O nosso foco é ajudá-lo a suportar a ansiedade e angústia”, descreve Ueliton. Complementando, Dr. Guimarães afirma que “Quando o paciente está no registro da compulsão, ele não consegue conversar, pois as sensações corporais são muito intensas. Ele não sabe o que quer e fica bastante inquieto. Nesse momento, a medicação entra para estabilizar os sintomas físicos; no segundo momento, com o quadro minimamente estabilizado, dá-se lugar à palavra”. Assim, fica nítido que o processo de recuperação de um adicto é lento, composto de etapas diferentes que respondem a objetivos diferentes, e que é preciso tratar não somente os sintomas graves: “uma vez que o paciente está angustiado e consegue comunicar sua agonia, aí ele abre o vínculo e está mais disposto a dividir com a gente. O que me interessa é localizar a conjuntura que o levou à dependência para poder ver a porta de saída, pois ela tem a ver com a porta de entrada”, acrescenta Sauce.
Cimentando com a palavra
Pablo relata que, a depender de como o paciente chegou à clínica, a dificuldade do diálogo tende a ser maior. “Se veio a contragosto, trazido pela família, o comportamento é de confronto, de reclamar e não comparecer. Muitos casos vêm por conta própria, mas não estão abertos para conversar. Isso dificulta muito a abordagem”. Ueliton explica que as atividades terapêuticas do programa de dependência química envolvem quatro abordagens: atendimentos individuais, atendimentos com as famílias, grupos e os acompanhamentos terapêuticos. Há, também, equipes que abordam temas distintos, como: desintoxicação, como lidar com a internação, abstinência e fissura. “Nos grupos, o paciente fala muito sobre sua inquietação inicial com as drogas, além de trocar experiências, sugestões de medicamentos, praticar exercícios físicos, música ou qualquer atividade que concorra com a compulsão e o mantenha ocupado. É um momento para compartilhar experiências e esvaziar um pouco a intensidade do vício”, detalha, contando que “já houve casos de disparo da fissura no meio de uma sessão de grupo, por estarem falando sobre a droga. O paciente sentiu embrulho no estômago e vontade de usar, mas por estar no grupo e poder falar, a sensação final foi de apaziguamento. Ali mesmo, durante a atividade, ele teve o recurso da fala, que o impediu de recorrer ao uso da droga”, finaliza.