Por LUIZ FERNANDO PEDROSO
É bastante auspiciosa a iniciativa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em questionar a política brasileira de combate às drogas. Afinal, vinte e cinco anos de regime democrático no Brasil é tempo mais que suficiente para rever uma legislação equivocada implantada pela ditadura militar. Drogas sempre existiram e, até as primeiras décadas do século passado, eram vendidas livremente nas farmácias do Brasil. Foi o artigo 281 do código penal de 1940, feito em plena vigência da ditadura do Estado Novo, que proibiu o comércio do que se chamava na época de “entorpecentes”.
Em 1968, com o decreto lei 385, a ditadura militar criminalizou pela primeira vez o usuário e, em 1971, com a lei 5726, obrigou a internação psiquiátrica compulsória de todos os “toxicômanos”, bem como médicos e escolas a os delatarem. Nessa época, as drogas eram mais associadas aos movimentos estudantis e intelectuais contestatórios do que ao crime, como ocorre hoje em dia. Com essa legislação, a ditadura afinava-se com a política americana antidrogas desencadeada pelo governo Nixon.
Como aponta o ex-presidente, a guerra contra o narcotráfico fracassou. Porém, mais que isso, ela é fruto de um pensamento autoritário baseado na concepção de um estado policial e na hipossuficiência dos cidadãos. Se a saúde pública fosse levada em conta, essa guerra não se sustentaria. Todo médico sabe que drogas não fazem necessariamente mal, pois, como dizia Paracelso, a diferença entre a droga e o veneno é a dose. Portanto, seu efeito depende do que os indivíduos fazem com ela. Intelectuais gregos usavam cogumelos alucinógenos para filosofar, os cristãos o vinho em seus rituais religiosos, o mesmo faziam os sacerdotes incas com a cocaína que também era a base do vinho Mariani usado pelo papa Leão XIII. Já os pobres de espírito usam drogas para assaltar, matar, estuprar, agredir a mulher, etc. E note-se que o crime sempre existiu, mesmo antes das drogas se popularizarem.
A grande tragédia pessoal relacionada às drogas é um fenômeno psíquico chamado de dependência. Ela não acomete todos os experimentadores ou usuários, mas tão somente uma minoria deles. É um quadro grave, associado a outros transtornos mentais em pelo menos 70 por cento dos casos, é de dificílimo tratamento e costuma destruir a vida da pessoa e da sua família. Alguns parecem ter uma propensão hereditária a desenvolvê-lo e a droga mais envolvida é o álcool. Então, assim como os diabéticos devem evitar o açúcar e o hipertenso o sal, o dependente deve evitar a droga da qual depende. E é responsabilidade dele fazê-lo. Nem a família, nem o estado podem fazer por ele.
Foi com a Associação dos Alcoólicos Anônimos que, há muitos anos atrás, aprendi a diferença entre o combate à dependência química e o combate às drogas. Dizem eles: “não somos uma associação de combate ao álcool, mas de combate ao alcoolismo; reconhecemos que as pessoas normais podem beber sem problemas; somente nós, que somos alcoólatras, é que não podemos fazê-lo”. A ideologia autoritária se alimenta da idéia da hipossuficiência do cidadão. Nessa matéria, trata a sociedade como se, toda ela, fosse dependente química, prescreve a abstinência para todos e propõe que o Estado, e não o indivíduo, seja o gestor dessa conduta. A tragédia de alguns vira a tragédia de toda a sociedade com a manutenção de um mercado clandestino de drogas que arma e dá poder à criminalidade e, de outro lado, com a manutenção de uma burocracia cara e corrupta de controle do cidadão.
Não faltará quem diga que o povo não está preparado para a legalização das drogas. Era o que falavam os próceres da ditadura militar quando, sem outros argumentos para justificá-la, diziam que o povo não estava preparado para votar. Certamente, esses anos todos de democracia não foram suficientes para varrer o lixo autoritário incrustado na burocracia e na cultura do nosso país.
*Médico psiquiatra, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria e diretor clínico do Espaço Holos
Artigo publicado pelo Jornal A Tarde em 17/09/2009