Em artigo publicado no jornal A Tarde, o psicólogo da Holiste, Pablo Sauce, fala sobre a mudança de hábitos e a “nova normalidade” causada pela pandemia do novo coronavírus.
A pandemia nos tirou de forma abrupta da normalidade e forçou uma mudança de hábitos, em particular aqueles que envolvem a interação presencial. Produto de um surto viral, guardando as devidas proporções, possui mais semelhanças com os efeitos de um surto psicótico do que possa parecer à primeira vista. Ambos transmutam os parâmetros de normalidade e, após a eclosão do surto, nossa realidade não será mais a mesma. Os modos de interação social estabelecidos até agora foram interditados, enquanto os novos, permitidos e promovidos na aldeia global da internet, não incluem os modos de existência e vinculação social de milhares de pessoas, gerando um sentimento de desconexão.
Em recente pesquisa no Google, foram achados 9.530.000 resultados para “nueva normalidad”. Este descritor carrega uma aparente contradição: de um lado, a normalidade, que implica algo habitual ou ordinário, a submissão à uma norma estabelecida; do outro, o novo, que implica algo extraordinário ou inabitual. Porém, o que a viralização da nova normalidade deixa em evidencia é o caráter mutante inerente a qualquer “princípio de normalidade”, cuja aplicação é indispensável no campo da Saúde Mental.
Acontecimentos extraordinários, como a atual pandemia, levam a estados de exceção das normas estabelecidas, nos forçando a revisitar nossos hábitos de vida. Muitos destes, que até ontem eram considerados normais, de um dia para outro se tornaram risco de vida e uma ameaça à ordem pública. De pronto, o isolamento social, outrora suspeito, virou o padrão para uma vida saudável, assim como o tão valorizado contato físico tornou-se um tabu em nossa cultura, dando lugar ao princípio de noli me tangere (não me toque).
Este recurso de defesa mental, caro às obsessões, uma vez elevado à categoria de norma social promove a incorporação massiva de hábitos de convivência onde tudo aquilo que não for rigorosamente asséptico torna-se uma ameaça. Nossa consciência, ante o risco de contágio por pensamentos considerados anormais, os submete ao princípio de Descartes: Esterilizo, logo existo. Tudo o que não é esterilizável torna-se descartável.
Guardando a devida distância com o incomparável trabalho dos profissionais que lidam diretamente com o Coronavírus, os profissionais da Saúde Mental tratam dos efeitos do Mental-vírus, o irredutível fator viral do mental, que nos confronta com a impostergável tarefa de testemunhar e propiciar recursos para a construção de novas normalidades. Perante as catástrofes virais no mental, cabe-nos advogar por modos de conexão não tóxicos, porém tampouco subsumidos ao isolamento social como norma, a partir de uma generalização do princípio do Não me toque!