Excluindo as doênças mentais mais graves – nas quais as perturbações das funções psíquicas são facilmente reconhecíveis através de sintomas como delírios, alucinações ou crises de agitação psicomotora -, é difícil estabelecer um diagnóstico em psiquiatria. Não há parâmetros unívocos para detectar com precisão as alterações na estrutura do pensamento, na produção das ideias, na intensidade da atenção, nas nuances da senso-percepção. As fronteiras entre a chamada normalidade e a psicopatologia não são bem delimitadas e mudam em função das circunstâncias socioculturais.
O psiquiatra conta apenas com a capacidade de observação e a subjetividade para avaliar este imponderável material que é a vida psíquica. Isso faz com que os diagnósticos em psiquiatria muitas vezes oscilem, não tenham a firmeza desejada.
Em 1952, a Associação Psiquiátrica Americana (APA) lançou a primeira versão do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais, que passou a ser mundialmente conhecido como DSM. Suas três primeiras versões não diferiam muitos dos grandes compêndios de psiquiatria, com suas densas descrições da psicopatologia, na maioria das vezes baseadas em pressupostos psicanalíticos. Em 1980, saiu sua terceira edição, o DSM3, com um enfoque diferente, procurando uniformizar e padronizar os dados observados, com o objetivo de deixar os diagnósticos psiquiátricos menos vagos e imprecisos. Grosso modo, ao invés de atentar para os meandros do psiquismo e as profundezas da psicopatologia ou da psicodinâmica psicanalítica, o DSM3 se centrou no registro dos sintomas observáveis no pragmatismo e na conduta do paciente, mais fáceis de quantificar e avaliar estatisticamente. Os motivos conscientes ou inconscientes que poderiam estar ligados a estes sintomas não são valorizados, não é feita uma relação de causa e efeito entre vivências existenciais traumáticas e a sintomatologia. O exame psiquiátrico não se interessa pela vida do paciente.
Esse enfoque reflete uma mudança na própria abordagem e compreensão da doença mental. Abandonou-se a visão analítica psicogênica e se defende a ideia de que o funcionamento normal do psiquismo resulta do equilíbrio dos neurotransmissores cerebrais, substâncias existentes entre os neurônios a facilitarem a circulação dos impulsos e sinais. Os sintomas seriam evidências do desequilíbrio dos neurotransmissores. Em sendo assim, não importam as vivências atuais e passadas do paciente e sim o repertório de sintomas que exibe e que será eliminado com uma medicação que devolve aos neurotransmissores o equilíbrio perdido. As psicoterapias são desvalorizadas e quando indicadas, devem seguir a linha cognitivista, que ensina o paciente a lidar com o sintoma através de treinamentos e condicionamentos conscientes. Não pode ser ignorado que este panorama se instala dentro de dois grandes referenciais econômicos – a indústria farmacêutica e os seguros-saúde, ambos beneficiados pela ênfase quase exclusiva na medicação. O primeiro, pelo incremento nas vendas, pois das medicações prescritas nos Estados Unidos, as psicotrópicas são as mais vendidas, tendo movimentado mais de US$ 14 bilhões em 2008. O segundo, que passa a impor para os segurados um modelo cognitivo de terapia com poucas sessões, que lhes é bem mais barato do que as longas terapias que antes tinham de pagar.
Largo debate se estabeleceu desde então. Os aspectos positivos deste enfoque são a tentativa de uniformização dos critérios diagnósticos, compartilhados facilmente por psiquiatras de várias culturas e formações diversas, o que deu novo alento à pesquisa e epidemiologia em psiquiatria. Como pontos negativos, ressalta-se a proliferação desenfreada de diagnósticos, a patologização e medicalização de modos de ser, a expansão para a infância de diagnósticos antes restritos a outras faixas etárias, como o transtorno bipolar.
A própria psiquiatria sofre uma certa desumanização, na medida em que o paciente fica despojado de sua singularidade, em que sua história é ignorada. Descarta-se o saber psicanalítico e a consulta psiquiatra fica rebaixada a um mero check-list de sintomas, na qual o paciente não tem oportunidade de falar de sua angústia e sofrimentos. Ao relegar sua vertente psicoterápica a um segundo plano e enfatizar excessivamente o lado medicamentoso, cuja importância não pode ser diminuída, a prática psiquiátrica fica empobrecida. Além do mais, se a psicopatologia fica reduzida a um mero desequilíbrio dos neurotransmissores, qualquer médico não psiquiatra se sente autorizado a passar antidepressivos e tranquilizantes, como ocorre atualmente.
Este é o pano de fundo que se instalou progressivamente desde os anos 80. Agora se aguarda com expectativa o DSM5, a quinta edição do manual, a ser lançada em maio do próximo ano. No último dia 11, o dr. Allen Frances, que liderou uma das forças-tarefa do DSM4, escreveu um artigo no New York Times fazendo pesadas críticas ao modo como os trabalhos estão sendo encaminhados.
Allen teme que o DSM5 seja um “desastre”, pois insiste em ampliar cada vez mais os critérios diagnósticos, invadindo a infância e procurando transformar as preocupações, angústias e tristezas inerentes à vida em sintomas a serem medicados. Com isso, “introduzirá muitos diagnósticos novos e não comprovados que irão medicalizar a normalidade”, resultando numa “fartura desnecessária e prejudicial de prescrição medicamentosa”.
Allen diz que a fabricação de diagnósticos – desvio no qual as DSM são pródigas – é mais danosa do que a proliferação de medicação, embora uma coisa leve à outra. Apesar de afastar a acusação mais comum de que o grupo do DSM5 está atrelado à indústria farmacêutica, sabe-se que mais de 70 % dele declarou ter algum tipo de vínculo com ela. Allen vai mais longe ao propor que a própria APA abdique da função de estabelecer o que é mentalmente são ou doente, pois acredita que o mundo mudou e que essa atribuição não pode mais ficar restrita a uma associação de psiquiatria e, sim, a um leque muito mais vasto de representantes da sociedade.
Vê-se que o DSM tentou resolver um problema – a excessiva subjetividade na formulação do diagnóstico – e caiu noutro, a produção excessiva de diagnósticos “objetivos”. É um impasse, que não deve ser entendido como uma prova da insuficiência da psiquiatria e, sim, como evidência da complexidade do fenômeno do qual ela trata.
Não é fácil medir e pesar a loucura dos homens, como tão bem sabia Machado de Assis. Em O Alienista, o Dr. Simão Bacamarte também oscilava em firmar o diagnóstico – serão todos loucos em Itaguaí, ou não há louco nenhum? Sem chegar a uma conclusão, termina por se internar sozinho no Hospício de Casa Verde, numa decisão mais filosófica do que clínica.
Por Sérgio Telles. O Estado de São Paulo.