Pesquisador conta que manifestações populares se aplicam ‘muito bem’ sobre como o cérebro funciona em relação às emoções.
O Rio ganha esta semana o status extraoficial de capital mundial do cérebro. O novo ambulatório do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer acaba de começar a funcionar e é, desde já, uma referência nacional no tratamento neurológico de ponta. Na próxima segunda-feira chega à cidade um dos maiores especialistas do mundo em neurociência, o pesquisador português António Damásio, professor da Universidade de Southern California, em Los Angeles, para ser estrela de uma palestra na sede da Fundação Getúlio Vargas, em Botafogo. Para Damásio, a forma como expressamos nossas as emoções está longe de ser uma escolha individual: “Não somos isolados na selva”. Numa rápida entrevista para O GLOBO, Damásio defende que o cérebro é, antes de tudo, um órgão moldado socialmente e a onda de manifestações de rua que o Brasil vive são exemplo disso.
O GLOBO: É possível explicar a movimentação popular quase espontânea que ocorre no Brasil à luz da neurociência?
António Damásio: É uma análise viável, mas temos que ser prudentes. Há coisas que fazem sentido. Quando as pessoas vivem em sofrimento, há de se ter válvulas de escape, sobretudo quando o sofrimento está aliado com uma vontade de justiça. Essa movimentação se aplica muito bem sobre como o cérebro funciona em relação às emoções. Não somos apenas um cérebro de emoções individuais, mas sociais. O despertar do movimento tem a ver com a comunicação digital, que permite uma movimentação muito mais rápida. As situações de sofrimento são tão antigas quanto a Humanidade, o que muda neste século XXI são os meios de comunicação.
O GLOBO: Se as emoções se expressam também socialmente, então temos muito menos autonomia sobre nossas escolhas como indivíduo do que pensamos? É o meio que molda nossa identidade?
AD: Sempre foi assim. Do ponto de vista da ciência, somos um cérebro individual, mas que se molda socialmente. Não crescemos isolados na selva. O meio ambiente em que vivemos, quer físico ou não, se envolvem diretamente na nossa formação. É assim desde que nascemos e assim será até o último dia.
O GLOBO: A comunicação digital vai mudar o nosso cérebro? Haverá influência inclusive na anatomia do órgão?
AD: É possível fazer a hipótese de que haverá influência, mas precisa-se fazer estudos para analisar essa questão. Há 5 mil anos não havia escrita, só existia a comunicação oral e é evidente que esta novidade teve um impacto na nossa organização cerebral, a leitura afetou a profundidade com que usamos nossa linguagem, pensamos e vemos as coisas. É possível que a influência digital seja menor no nosso cérebro do que teve a escrita, mas só se saberá depois, quando estudarmos as crianças que crescerem sobre essa influência.
O GLOBO: Quais são os desafios para a neurociência?
AD: É evidente que hoje em dia nossa sobrevida é muito longa, mas também há dentro dos nossos próprios grupos sociais o crescimento de doenças neurológicas, como Alzheimer e outros tipos de demência. É uma realidade preocupante, pois não existe ainda tratamento viável, talvez seja o maior dos nossos desafios. Vencemos desafios enormes, como nos tratamentos para doenças do coração e alguns tipos de câncer. Mas não vejo com pessimismo, não é um problema intransponível. Não se trata de fazer previsões, mas acredito que nos próximos dez anos teremos avanços importantes.
Em Botafogo, debate tratará de envelhecimento e impacto das emoções
O controle das doenças do envelhecimento, o impacto das emoções no comportamento individual e coletivo, as consequências das tecnologias da informação sobre a sociedade e até as inspirações coletivas das atuais manifestações de rua são apenas algumas das áreas de atuação da neurociência. Assunto vasto e intrigante, “neurociência e processos sociais” será o tema do debate promovido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) na próxima segunda-feira. Além da presença do neurocientista português António Damásio, o encontro terá a participação do ex-ministro da Saúde e hoje coordenador de projetos da FGV Projetos, José Gomes Temporão.
— A vinda do pesquisador nos trará um balanço de duas décadas de avanço de pesquisas, principalmente sob a perspectiva da saúde — afirmou Temporão.
O ex-ministro identifica algumas aplicações “fundamentais” destes estudos para a saúde. Ele cita tanto os avanços das pesquisas em doenças relacionadas ao envelhecimento da população – a exemplo da depressão, demências senis, distúrbios neurológicos e o mal de Alzheimer -, assim como aquelas que se empenham em entender os primeiros passos do desenvolvimento de um bebê.
— No passado, pensava-se que para ter uma criança saudável, bastava alimentação e vacinas. Hoje, sabe-se que há momentos importantes de formação do cérebro: no período intrauterino, nos primeiros anos do bebê e na adolescência. Por isso políticas com este fim são fundamentais — justifica.
FONTE – O Globo