Por LUIZ FERNANDO PEDROSO
Há pouco mais dois meses, a Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos anunciou que agora em março iria desenvolver ações de combate ao crack no Centro Histórico de Salvador lançando mão, inclusive, da internação compulsória. Iniciativas como esta, a exemplo das que vêm ocorrendo no Rio e São Paulo, sinalizam uma mudança radical nas políticas públicas de saúde mental. Em primeiro lugar, porque passam a reconhecer a dependência química como uma doença mental grave que requer intervenções duras com limites e tratamento. Em segundo lugar, porque passam a admitir a internação psiquiátrica como um instrumento terapêutico necessário e legítimo para a abordagem dessas doenças. De quebra, resgatam um pouco de respeito pelo espaço público, cuja utilização deve requerer, de todos, um mínimo de decoro.
Até então, por sua natureza ideológica, essas políticas foram mais direcionadas para movimentos contestatórios do que para ações terapêuticas de natureza técnica. Inspiradas na antipsiquiatria dos anos sessenta, elas tiveram como carro chefe o fechamento dos hospitais psiquiátricos e a denúncia da própria medicina psiquiátrica como uma prática supostamente abusiva. Conforme o ideário da contracultura, muito em voga naqueles tempos revolucionários, a loucura não seria uma doença propriamente dita, mas uma rebeldia contra as “injustiças sociais” que aos médicos caberiam sufocar. Consequentemente, era preciso defendê-la contra os hospitais, eletrochoques, remédios e psiquiatras que nada mais seriam que instrumentos de repressão de uma sociedade autoritária. Os loucos deveriam ficar em praça pública como chagas de uma doença social, expostas para incomodar e denunciar a sociedade capitalista. Aparelhada pela política, a doença mental virou “movimento social”, pacientes viraram militantes, associações e ONGs foram criadas, o movimento antimanicomial ganhou as ruas e, nos anos noventa, com a chegada dos partidos de esquerda ao poder, a antipsiquiatria virou política de estado com a lei da Reforma Psiquiátrica baseada no anteprojeto do então deputado do PT, Paulo Delgado.
Diz o velho ditado que os fanáticos instigam e os corruptos se aproveitam. Assim é que, no poder, o movimento antipsiquiátrico abrandou-se, perdeu a verve revolucionária e virou um movimento burocrático de reforma institucional. Na boca dos funcionários públicos, aquela lenda ideológica que pretendia combater o capitalismo acabou sendo apenas um álibi populista para justificar a falta de investimento na saúde mental. Do seu ideário original, pouco sobrou a não ser a enorme desassistência da população carente e o desprestígio da psiquiatria.
Ao lançar mão da internação compulsória para os dependentes químicos, as duas maiores cidades do país parecem ter dado início ao fim daquela famigerada reforma. Nessas ações, o “morador de rua” passa a ser visto como um possível portador de um transtorno mental em estado de abandono e consequentemente alguém merecedor de assistência médica e psicológica especializada. A interferência de terceiros se impõe para que lhe seja assegurada a recuperação de suas funções mentais, de sua liberdade psíquica, até então tolhida pela doença. Perdem os “movimentos sociais” e a exploração demagógico-populista dos miseráveis. Por outro lado, aparece uma demanda por leitos hospitalares que estava reprimida pelo discurso oficial. Famílias humildes descobrem que não precisam assistir impotentes à decadência dos seus entes queridos, nem se submeter à sua violência na “fissura” pela droga e tão pouco mantê-los acorrentados em casa. Agora, passam a procurar espontaneamente os serviços públicos de saúde reivindicando o mesmo tratamento dos que podem pagar uma assistência particular ou um bom plano de saúde, pois, para esses, a Reforma Psiquiátrica nunca existiu. Mais reconhecido, o psiquiatra aparece nessa ação como o fiador da democracia, pois é ele o profissional que, ao diagnosticar a doença e a incapacidade mental, impede que um ato de força terapêutico seja confundido com uma arbitrariedade de um estado autoritário.
Luiz Fernando Pedroso é Médico Psiquiatra, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria e Diretor Clínico do Espaço Holos.
Artigo publicado pelo Jornal A Tarde em 25/03/2013 no Caderno “Opniões”, página A3.