Com mais de 70 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, desde que foi lançado em 2011, o primeiro livro da trilogia “50 Tons de Cinza”, de autoria da escritora britânica Erika Leonard James, tem atingido não só recordes de vendas, mas corroborado para o aumento da venda de produtos eróticos nos EUA, conforme matéria publicada pelo jornal New York Times.
Tanto sucesso rendeu a E. L. James, em 2012, o nome na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo pela Revista Time, o título de personalidade editorial do ano pela revista estadunidense PublishersWeekly, e uma das 100 celebridades mais poderosas de 2013 pela revista Forbes.
No Brasil, os romances da escritora superaram a marca de 3,8 milhões de exemplares comercializados em menos de um ano. Para quem não teve o interesse ou a oportunidade de ler a obra erótica ou assistir ao filme, o best-seller retrata a apimentada relação entre uma jovem estudante de literatura com o hedonista e poderoso empresário, Christian Grey, que passa vivenciar a polêmica prática do sadomasoquismo.
Tamanha aceitação do público pode ser facilmente compreendida se considerarmos o poder que a imaginação tem quando bem estimulada. Mas, quando a fantasia atravessa a linha de chegada da ficção e parte para a realidade? Qual o limite entre o saudável e o patológico?
“As parafilias – interesses sexuais não voltados diretamente aos genitais ou às preliminares – podem fazer parte do comportamento do ser humano, para satisfação do desejo próprio e do(s) parceiro (s). São consideradas normais quando envolvem parceiros humanos, com características físicas desenvolvidas e capazes de consentir o ato sexual. Estes casos não são passíveis de intervenção ou qualquer tratamento”, conclui a psiquiatra Livia Castelo Branco.
Entretanto, é preciso considerar que, por trás de “inocentes fetiches” e “brincadeiras picantes”, podem estar escondidos transtornos de sexualidade. De acordo com Livia, quando as fantasias ou comportamentos sexuais estão associados a sofrimento, vergonha ou algum tipo de prejuízo na vida da pessoa, ou quando a satisfação sexual leva algum risco para outro indivíduo, é estabelecido o diagnóstico de um transtorno parafílico. “Pode haver comorbidade com outros transtornos mentais, como depressão, ansiedade, transtorno de personalidade e dependência química, que podem ser tratados em conjunto “, afirma a psiquiatra.
Entre os transtornos parafílicos estão o frotteurismo, em que há excitação ao esfregar-se em uma pessoa que não autorizou a aproximação; a asfixiofilia, quando o indivíduo procura excitação sexual pela restrição da respiração; o voyeurismo, em que o prazer nasce do visual, ao assistir práticas sexuais de terceiros; e a pedofilia, preferência sexual por crianças.
Além dos transtornos parafílicos, os transtornos da sexualidade também incluem as disfunções sexuais e a disforia de gênero, e um único indivíduo pode apresentar mais de um transtorno ao mesmo tempo. Os distúrbios merecem uma atenção especial quando interferem de forma significativa na vida do indivíduo.“As pessoas devem procurar ajuda médica quando tiverem algum tipo de sofrimento com os sintomas, interferência negativa em seus relacionamentos, trabalho, vida social, qualidade de vida, ou caso coloquem outras pessoas em risco de alguma forma”, alerta Livia.
Disfunções sexuais são caracterizadas pela dificuldade do indivíduo de responder sexualmente ou de sentir prazer sexual. Podem afetar o desejo de iniciar uma relação, a excitação durante o ato e/ou o orgasmo, causando desconforto ou dor durante a atividade sexual, com sofrimento na maioria das relações.
Já a disforia de gênero se refere ao sentimento de profundo desconforto com o gênero atribuído ao nascimento e suas características. Tal conflito pessoal ficou em evidencia com a personagem Ivana, vivido pela atriz Carol Duarte, na novela global A Força do Querer. Quem assistiu o drama, acompanhou o sofrimento da personagem e o forte desejo de livrar-se de tudo que a remetia ao universo feminino, a exemplo dos seios e roupas femininas. Ainda de acordo com Livia, “apesar de nem todos os indivíduos terem o sofrimento como resultado desta incongruência, muitos sofrem quando não têm acesso a adequações físicas por meio de hormônios ou cirurgia”.
Para o psicólogo Ueliton Pereira, as fantasias sexuais são normais e saudáveis para todos os indivíduos, sendo elas aprovadas pelas partes que estão em jogo, jamais quando uma das partes rejeitar ou se sentir oprimida ou forçada por fazê-la: “O objetivo principal da fantasia sexual é proporcionar prazer para todos envolvidos com o que temos de melhor, que é a nossa imaginação. Freud dizia que elas são fundamentais no exercício da libido e do tesão, seja entre quem tem ou não parceiros sexuais” – explica. “A pessoa só deve buscar tratamento quando aquela fantasia se torna condição indispensável para obter a satisfação sexual, quando a pessoa age por compulsão e o ato é usado para aliviar angústias reprimidas”, ressalta.
Tratamentos
Se as patologias são ricas em especificidades, o tratamento não pode ser o mesmo para todos.
Conforme explica a psiquiatra Paula Dione, os casos de transtornos de disforia de gênero, por exemplo, demandam abordagem multidisciplinar, pois o paciente necessitará ser orientado por profissionais de varias áreas.“O papel do psiquiatra será, entre outras coisas, diagnosticar, tratar e/ou excluir a existência de patologias associadas ao evento”, afirma. Nestes casos, a psiquiatra recomenda que sejam realizadas intervenções precoces, com um acompanhamento psicológico e psiquiátrico. “O objetivo é ajustar o paciente mais cedo possível a uma vida mais compatível e satisfatória, evitando dificuldades de adaptação física e psíquica e outras complicações na vida adulta. Os tratamentos biológicos (hormônios e cirurgia em alguns casos) visam adequar o físico do indivíduo à identidade de gênero psíquica”, explica.
As disfunções sexuais podem ter causas físicas, por este motivo a investigação urológica e ginecológica sempre deve ser realizada. Além do tratamento de causas clínicas específicas, a adoção de um estilo de vida saudável e a psicoterapia aumentam o bem-estar e facilitam o engajamento em relações com maior tranqüilidade. Quando quadros depressivos ou ansiosos estão associados aos sintomas sexuais, tanto como causa da dificuldade sexual quanto como em conseqüência do sofrimento que surge, o tratamento medicamentoso com antidepressivos ou ansiolíticos poderá ser adotado.
Já para os transtornos parafílicos, podem ser realizados tratamentos com medicamentos e psicoterapia. O tratamento não modifica a preferência sexual, mas pode controlar a impulsividade, reduzir a freqüência de fantasias sexuais e prevenir recaídas.
De acordo com Ueliton, transtornos da sexualidade tem tratamento. “Às vezes, somente a psicoterapia já proporciona um processo de amadurecimento e conforto pessoal, pois constrói um espaço para que o paciente fale sobre suas questões e dificuldades nas relações sociais e familiares. Mas, verificamos resultados ainda melhores quando o tratamento é feito em conjunto com o psiquiatra. O trabalho multidisciplinar quase sempre se mostra mais rico e eficaz”, finaliza.