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UM VÍRUS, DUAS PANDEMIAS | por André Dória

Em artigo publicado no Jornal A Tarde, o psicólogo e coordenador do Programa de Tratamento do Transtorno Bipolar da Holiste, André Dória, fala sobre o mal estar na civilização e as tensões geradas pela pandemia.

O mal estar generalizado causado pela pandemia do coronavírus tem produzido diversas reflexões, debates e exercícios de futurologia sobre o que nos restará dessa experiência.  Ao contrário disso, proponho um exercício de passadologia, um retorno ao distante 1930, ano de lançamento de O mal estar na civilização, considerado um dos mais importantes textos de Sigmund Freud sobre a sociedade e a cultura.

Dentre as ideias dessa obra fundamental que atravessou o tempo, persiste a noção de que a fonte do mal estar do homem situa-se em três campos: na relação com as ameaças da natureza, na relação com a perecibilidade do corpo, e nas relações interpessoais. Ironicamente, quase um século depois, um vírus infecta justamente essas três instâncias simultaneamente, o que traduz a rara dimensão do mal estar provocado.  Surge da natureza – teorias conspiratórias à parte -, afeta o corpo, podendo levá-lo a morte e, finalmente, contamina a relação social com o aumento da ansiedade e das tensões geradas pelo isolamento social como medida profilática.

Se no campo da saúde mental é importante desconfiarmos do discurso científico como única explicação para o sofrimento psíquico, parece inegável que em outros campos o avanço da ciência tornou possível algumas vitórias na assimétrica relação do homem com a natureza e com a precariedade de seu corpo. Entretanto, em algumas partes do mundo, no Brasil especialmente, o coronavírus tem encontrado uma espécie de hospedeiro poderoso que aumenta exponencialmente sua letalidade: o obscurantismo. Tal como num filme de ficção científica, as pessoas contaminadas por essa pandemia obscurantista retornam estranhamente a um estágio mental medieval. O sintoma é semelhante ao causado por um vírus de computador: apaga a memória de séculos de evolução do pensamento humano, conduzindo os infectados a uma espécie de túnel do tempo, onde a terra volta a ser plana, os comunistas não comem mais criancinhas, mas produzem vírus que vão destruir o capitalismo, e onde as vacinas matam. Isso quando não são produto de uma engenhosa articulação de empresas que espalham a doença para vender a cura.

Os acometidos pela pandemia do obscurantismo, sobretudo quando ocupam posições de poder, sofrem um curto circuito no pensamento, originando um discurso que, ao mesmo tempo que encontra ressonância em alguns grupos, rompe drasticamente com a realidade. A paranóia e a perversão são institucionalizadas e retroalimentadas pelos que comungam das mesmas ideias. Paralelamente ao discurso oficial, o aumento do número de pessoas com queixa de angustia parece traduzir o sofrimento dos que se sentem desbussolados, em um dos momentos de maior mal estar da história recente da humanidade.