Atualmente, muito se fala sobre o aumento do número de diagnósticos das doenças e transtornos mentais e, principalmente, de novas denominações para as patologias. Mas, será que as pessoas estão realmente adoecendo mais ou existem outras questões por trás desse fenômeno?
O psicólogo André Doria, coordenador do programa de transtorno bipolar do humor da Holiste e mestre em psicologia, defende que muitas dessas denominações na saúde mental têm origem em quadros identificados ao longo da história da humanidade. “Acredito que a embalagem das doenças está diferente, mas a origem delas é a mesma. Se uma pessoa em 1950 lavava as mãos compulsivamente e nos anos 2000 compra compulsivamente, estamos falando de compulsões que se mostram diferentes apenas na forma como se apresentam. Se o consumo é um dos traços do mundo contemporâneo, a pessoa pode se valer do que encontra na cultura de seu tempo para manifestar sua compulsão. O que me parece fundamental é que a raiz do transtorno é sempre individual e os sistemas classificatórios, como os DSMs, por exemplo, ao construírem critérios rígidos para a elaboração do diagnóstico médico, acabam por desconsiderar o mais importante: o que há de singular no adoecimento. Ao meu ver, esses critérios diagnósticos, quando tomados com crítica e cautela por parte dos profissionais, podem servir como um norte para o tratamento medicamentoso. Essa é uma ferramenta do psiquiatra. O equívoco ocorre quando a psicologia, mas sobretudo os psicólogos, se deixam seduzir pela ideia de que a psicologia pode se servir deste discurso de forma acrítica. Acho que o que nos interessa é justamente o que há de particular no adoecimento psíquico e que escapa às classificações cada vez mais numerosas. ”, analisa.
Tal discussão deve-se muito à última atualização do Manual Diagnósticos e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) – documento oficial da psiquiatria americana, no qual contemplam-se todos os diagnósticos. Na primeira edição, em 1952, o DSM contava com 106 doenças catalogadas, número que triplicou em 60 anos: no DSM-5, lançado em 2013, são catalogadas 376 doenças. Para Luiz Guimarães, psiquiatra da Holiste, o que ocorre é que hoje se fala mais sobre as doenças mentais e, por consequência, os tratamentos são mais procurados. “Não acredito que as pessoas estão mais doentes. Os transtornos mentais sempre existiram, mas temos de considerar que, por vezes, existe a banalização dos diagnósticos e dos quadros psiquiátricos. Ao mesmo tempo, as pessoas têm adoecido mais, em função da forma como vivem e das particularidades da sociedade atual”, pondera. O médico ainda destaca que existem questões como o não saber lidar com certas dificuldades e frustrações, maior exposição da vida particular e uma certa distorção no uso das novas tecnologias, como a divulgação nas plataformas de redes sociais de um estado de ‘felicidade permanente’.
Segundo André Dória, setores da própria psiquiatria tem criticado esse ‘furor’ classificatório do DSM-5. “Esta última edição tentou encontrar marcadores biológicos e neurológicos para as doenças mentais, e fracassou. Essa expansão dos diagnósticos é uma tentativa de alguns setores da psiquiatria de se pretenderem quase que uma ciência exata, matemática. Mas, como é possível matematizar o que é da ordem da subjetividade?”, questiona. O psicólogo pontua a inexistência de um exame clínico que aponte depressão, transtorno bipolar ou qualquer outra doença mental de forma clara e específica. “Essa é uma questão subjetiva e que varia de pessoa a pessoa, por isso é preciso ter um olhar individual para cada paciente”, justifica. Outro aspecto abordado por Dr. Guimarães diz respeito à cultura da medicalização, originada, principalmente, no avanço da indústria farmacêutica e rapidamente incorporada pela sociedade. “As pessoas procuram o médico com o objetivo de buscar um medicamento que resolva seu problema e, muitas vezes, ainda querem um resultado imediato. Não adotam um estilo de vida saudável, se alimentam mal, não fazem atividade física e vêm ao consultório pedir um remédio para emagrecer, para conter a ansiedade ou a compulsão por comida. Ou seja, querem que o medicamento sozinho seja a solução, querem uma pílula para resolver os problemas”, adverte.
Sem rótulos
Um dado que merece atenção é as rotulações das doenças mentais. Segundo André, um bom diagnóstico da doença pode ajudar no tratamento, mas, por outro lado, pode alienar o sujeito ao seu processo de adoecimento psíquico. “Isso não é necessariamente ruim, mas quando temos diagnósticos feitos indiscriminadamente, o verdadeiro sofrimento daquela pessoa não aparece, pois tem como base um olhar generalizado. Há pessoas que recebem um diagnóstico de transtorno bipolar e se utilizam dele para não se responsabilizarem por suas ações e escolhas, o que pode agravar o quadro”, afirma, destacando que na Holiste o tratamento segue o viés de responsabilização do sujeito. Ainda segundo o psicólogo, a generalização cria protocolos de avaliação das pessoas. “Um paciente que chega ao consultório com um quadro de depressão reativa a uma perda ou grande frustração e com diagnóstico anterior – como TDAH na infância, por exemplo -, pode ser ‘rotulado’ como portador de um transtorno bipolar, quando o ideal seria analisar esse fator apenas como uma probabilidade, não como uma determinação”, opina.
O especialista argumenta que, na saúde mental, cada sujeito tem as suas particularidades, sua história de vida e, consequentemente, seu próprio adoecimento. “Quando pacientes estão com uma infecção, a bactéria pode ser a mesma em todos os pacientes diagnosticados com aquela infecção. O tratamento químico também pode ser o mesmo. Mas quando falamos de depressão, transtorno bipolar ou de outro quadro psiquiátrico, as causas do adoecimento são individuais, os sintomas psiquiátricos é que são parecidos em um ou em outro caso. Mas, apenas parecidos, nunca idênticos. Onde o psicólogo, sobretudo os de orientação psicanalítica, colabora no tratamento? Ocupando-se do que é da ordem da singularidade de cada sujeito em seu sofrimento psíquico”, detalha.
Neste cenário, a Holiste se destaca pelo olhar diferenciado sobre o paciente, através de um plano terapêutico individualizado. “A medicação é fundamental para moderar os sintomas, mas sozinha não dá conta do tratamento, porque só conseguimos ter acesso a essas particularidades com a psicoterapia”, defende André.
Em saúde mental, o tratamento não se dá como em outras doenças físicas, pois os quadros não aparecem isolados. “Podemos ter uma compulsão ao álcool que seja originada a partir de uma depressão”, exemplifica o psicólogo, ressaltando que, nestes casos, a bebida funciona como uma espécie de ansiolítico, como anestesiador do mal-estar, o que pode gerar uma dependência química.
Cuidado com a banalização
Alguns transtornos são equivocadamente disseminados entre a população, como é o caso do Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), principalmente na infância, assim como entre os adultos identificam-se muitos casos de depressão e outras patologias. O TDAH é um distúrbio neurobiológico que se caracteriza pela combinação de sintomas de desatenção, hiperatividade (inquietude motora) e impulsividade. Dr. Guimarães acredita que o aumento do número de diagnósticos deve-se ao fato de mães e pais, por muitas vezes, não aceitarem que a criança tenha algum tipo de limitação. “Elas podem ter uma variação no desempenho, nem todo mundo é um ‘geniozinho’. Da mesma forma que vemos um exagero nos diagnósticos de TDAH, por outro lado há, também, um subdiagnóstico”, afirma o psiquiatra, esclarecendo que o transtorno pode precipitar outras patologias ao longo da vida do indivíduo, e que não é incomum identificar em adultos que fazem o uso de drogas, por exemplo, uma doença paralela associada ao TDAH.
Segundo Dr. Guimarães, as crianças que são diagnosticadas com o TDAH e realizam o tratamento durante a infância têm grandes chances de se tornarem adultos funcionais. Porém, muitos adultos que não foram diagnosticados e tratados na infância tornam-se disfuncionais, quando poderiam ter um desempenho melhor em sua vida social e profissional. “As pessoas com TDAH podem sofrer mais acidentes de trânsito, ter problemas de relacionamento, desempenho acadêmico inferior, não por causa da inteligência, mas porque não conseguem lidar com agendas, horários e compromissos, e o tratamento é fundamental para atenuar essas perdas”, complementa o psiquiatra.
O problema se torna ainda maior quando o ‘diagnóstico’ é feito pelo pedagogo ou professor, em função do mau desempenho da criança na escola. “O próprio profissional que recebe esta criança acaba reproduzindo esse rótulo, e a condução equivocada pode marcar o desenvolvimento dela, justamente por não ter entendido aquilo que, na verdade, está por trás daquele comportamento”, detalha.
O perigo farmacêutico
O avanço significativo da indústria farmacêutica – principalmente a partir da descoberta de determinadas medicações, como os antipsicóticos na década de 1950 – também merece atenção nesse cenário. “Todo avanço científico é bem vindo. Ninguém pode se opor a isso. Se por um lado muitas doenças que não dispunham de tratamento químico passaram a contar com ele, por outro esse avanço também causou um certo esvaziamento na autonomia médica. Em casos extremos, o médico se torna um mero prescritor de medicamentos, empobrecendo a prática psiquiátrica. Na Holiste, tentamos não perder isso de vista” descreve André Dória.
Assim como o psicólogo, Dr. Guimarães acredita que as novas denominações e rótulos são utilizados pela indústria farmacêutica para justificar o lançamento de medicações que, muitas vezes, já têm similares no mercado. Os representantes dos laboratórios apresentam medicamentos embasados em testes milionários e os recomendam para determinada patologia. “É preciso salientar que cada caso exigirá não só uma medicação distinta, como também um tratamento personalizado”, defende.