Em artigo publicado no Jornal Correio, o psicólogo e diretor técnico da Holiste, Ueliton Pereira, fala sobre a solidão e a ausência de contato nas relações contemporâneas.
No filme “Crash, no limite”, do diretor Paul Haggis, um de seus personagens diz: “É o sentido do tato. Numa cidade normal, você anda, esbarra nas pessoas. As pessoas trombam em você. Estamos sempre atrás do metal e do vidro. Acho que sentimos tanta falta desse toque, que batemos uns nos outros só para sentir alguma coisa”. Esta fala traduz nossa época, em que localizamos o mal no outro por não compartilhar das nossas crenças, valores e estilo de vida. Podemos dizer que, atualmente, mais do que evitar o contato, segregamos o que nos é estranho e nos encastelamos em condomínios fechados, em nome de uma falsa sensação de segurança, baseada na ideia de que o mal está fora dos muros.
A noção de proteção que a vida em comunidade encerra já foi dissecada por Freud em (1930), quando publica “O mal-estar na civilização”. A comunidade é, mais do que uma proteção para seus membros, uma garantia de regulação dos modos de satisfação dos seus componentes. A cultura se propõe a normatizar os modos de satisfação individuais, em nome de um projeto civilizatório. Atualmente, trocamos a segurança que o laço social proporciona pelo recrudescimento da segurança pública e privada.
Tudo que escapa ao programado pode virar ameaça e, consequentemente, gerar estranheza. O estatuto da diferença e da singularidade, fundamentais quando se trata das relações humanas, são deslocados de um lugar de potência para um lugar de ameaça. O diferente precisa ser segregado. Nas palavras de Byung-chul Han, “os indivíduos hoje se autoexploram e têm pavor do outro, do diferente. Vivendo, assim, no deserto, ou no inferno do igual”. Não à toa, presenciamos, indivíduos deprimidos, mortificados em seu desejo e isolados em seu próprio sofrimento.
Embora não possamos partir de generalizações, podemos notar que o excesso de privação do contato com o outro nos leva a suprir a solidão por uma outra via, também marcada pelo excesso: comprar, gastar, consumir. Essa seria mais uma tradução do mundo contemporâneo, marcada pela derrocada dos ideais coletivos e assunção do individualismo.
Olhando para história, foi justamente a sociabilidade dos primatas que o diferenciou das outras espécies. O homem herdou essa conquista e pôde evoluir para uma sociedade mais complexa. Hoje, o outro se torna descartável, não mais correspondendo àquele que pode agregar valor e força contra qualquer ameaça externa. Mas, por mais que tentemos fugir dessa relação com o outro, há algo que sempre retorna. Não há autossuficiência sem um preço alto a pagar.
O encontro com o outro é à prova de concretos, vidros e metais. Ao fim, como seres de linguagem que somos, é no equivoco das palavras que podemos nos reencontrar. Ao invés de nos preocupar com o Crash, que tal estarmos abertos ao Crush?