Em nossa sociedade, é comum a associação entre transtorno mental e algum déficit ou incremento de inteligência. Mas, existe uma relação direta entre as duas coisas?
O senso comum, não raro, traça uma ligação entre pessoas extremamente inteligentes e transtorno mental, entendendo esta relação como algo que as colocassem em um estado diferente do pensamento, como um autismo, uma sociopatia ou mesmo um transtorno bipolar. Para esclarecer a polêmica em relação ao tema, Dr. Victor Pablo, psiquiatra da Holiste, compareceu ao programa Saúde e Bem Estar, da rádio CBN.
O que é inteligência?
O ponto de partida para tratar deste assunto é definir o conceito de inteligência. “Inteligência diz respeito àquelas habilidades que você adquire no decorrer de sua vida até o término da formação de sua personalidade, que é aos dezoito anos. Então, ela geralmente diz respeito ao desenvolvimento psicomotor, habilidades visuais, habilidade de linguagem, lógica matemática. Então, seria aquele domínio do psiquismo em que você é mais inteligente se você consegue desenvolver mais rápido, reagir mais rápido ao estímulo e ao desafio, e resolvê-lo de uma maneira mais eficiente” – Explica Dr. Victor.
O que é atraso de desenvolvimento ou retardo mental?
O oposto da inteligência é o retardo mental, que atualmente é chamado de atraso de desenvolvimento. Ao contrário do que a maioria das pessoas pensam, este atraso no desenvolvimento não está diretamente relacionado com a falta de estudos ou coisas do gênero, mas com fatores genéticos. “As causas se inserem mais no contexto genético, na vida intrauterina (por isso é importante fazer um bom pré-natal) o uso de álcool e drogas pela gestante, o acompanhamento no período neonatal, e ainda existe a deficiência nutricional e a negligência parental na estimulação da criança” – pontua o psiquiatra.
Hiperatividade, na infância, tem relação com a inteligência?
Muita gente se recorda de um amigo de infância que não prestava atenção na aula, mas sempre tirava boas notas; aquela criança inquieta, que não fazia todas as atividades, mas que conseguia fazer excelentes avaliações. Hoje, estas crianças se encaixariam no perfil de um transtorno que tem ocupado bastante espaço na discussão entre pais, instituições de ensino e especialistas: o TDAH, que tem elevado a discussão sobre a medicação precoce de crianças e jovens. Existe, realmente, alguma relação entre o TDAH e a inteligência?
“Isso também é um mito. A hiperatividade é um sintoma muito comum de todos os transtornos infantis, não só do TDAH. Então, a criança bipolar, depressiva, ansiosa, muitas vezes o sintoma que se expressa é a hiperatividade. E isso pode interferir no desenvolvimento das fases. Inclusive, é interessante saber que o nosso cérebro nasce desmielinizado, justamente para que a gente vá, passo-a-passo, desenvolvendo cada etapa da inteligência: começa com a percepção do espaço sensório-motor, psicomotricidade, a linguagem, a interação interpessoal, a capacidade de criar um sistema de valores, tudo isso vem em etapas” – afirma o especialista.
Transtorno Mental x Inteligência
Quanto aos transtornos mentais em geral, principalmente na fase adulta, existe uma relação direta com a inteligência? Muitas vezes ouvimos um caso de alguém que é muito recluso, depressivo, mas que intelectualmente é genial. Também existe uma mística de que pessoas inteligentes demais são descompensadas emocionalmente, ou apresentam uma inconstância no humor semelhante ao transtorno bipolar. “É bom a gente não confundir as duas coisas, porque senão a gente cai naquele mito do “paciente visionário” – alerta Dr. Victor.
O que pode causar esta impressão, de que existe relação entre uma alta produtividade intelectual e transtorno mental, é justamente o fato de que ambos os fenômenos começam a ocorrer praticamente na mesma fase da vida do sujeito: o primeiro estágio da vida adulta, mais ou menos entre os 18 e os 30 anos. É neste período que o indivíduo vai passar no vestibular, iniciar uma vida acadêmica, iniciar a carreira profissional, fazer uma pós-graduação ou mesmo consolidar a construção de sua personalidade; da mesma forma, as primeiras crises psiquiátricas são registradas no mesmo período, o que pode gerar esta associação equivocada e generalizada entre as duas coisas.
“O interessante é que a maior parte dos transtornos mentais, as grandes crises (esquizofrenia, depressão e transtorno bipolar), elas se iniciam justamente nesta etapa, também por conta deste fechamento biológico. Ou seja: os últimos neurônios do lóbulo frontal são mielinizados nessa fase, e aí o cérebro se revela. Também é uma fase onde você tem enfrentamentos de mudança de vida: primeiro emprego, primeiro relacionamento frustrado, uso de drogas, vestibular. O importante é notar que uma pessoa que é superinteligente começa a entrar em crise (…) mas isso não diz respeito à inteligência, é porque ela desenvolveu um transtorno mental” – contextualiza o psiquiatra.
Longe de aceitar um transtorno mental como algo normal, inerente à uma inteligência mais elevada, Dr. Victor Pablo reforça a ideia de que o importante é procurar um tratamento adequado, afim de evitar sequelas mais graves que poderiam levar a um déficit de cognição. “Os transtornos mentais não interferem no campo da inteligência. (…) Quando eles não são tratados, aí sim, você pode desenvolver sequelas. (…) Aí a gente já não está falando de inteligência, mas de uma degeneração cognitiva que é um pouco parecida com perda neuronal, ou seja: demência”.
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