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O discurso da irresponsabilidade e a crítica covarde

Por LUIZ FERNANDO PEDROSO

O moço se drogou, perdeu o controle, sequestrou uma pessoa com uma faca, agrediu outras na rua e foi preso. Aí um psiquiatra foi chamado para ajudar, constatou um quadro de paranóia associado à dependência de drogas e o medicou para conter sua agitação. Pela manhã, ele apareceu morto na cela na qual havia sido colocado sozinho. De quem foi a culpa? Da polícia ou do médico?

Esse é o debate que a imprensa do sul vem divulgando sobre a morte do lutador de luta livre, agora chamada “Mixed Martial Arts”, Ryan Gracie. Advogados e representantes de entidades de direitos humanos culpam o Estado por não ter garantido o seu direito à vida e acham que a família deve ser indenizada. Já representantes do CREMESP e alguns professores da Escola Paulista de Medicina vêm erro na conduta do médico, tanto por não tê-lo transferido para um hospital quanto por tê-lo super-medicado  Até agora, parece não ter ocorrido a ninguém que o abuso de drogas é em si mesmo perigoso e pode expor a pessoa ou terceiros a risco de vida. E que, como ninguém obriga ninguém a se drogar, o responsável pelas conseqüências é o próprio usuário. Essa obviedade ululante causa estranheza numa cultura fortemente paternalista como a nossa onde a vítima é sempre inocentada e glorificada e são atribuídas aos outros, não raro ao governo e médicos, as responsabilidades pelos infortúnios ou pelas fatalidades naturais da vida.

Os casos públicos e notórios de celebridades que perderam a vida por abuso de drogas são inúmeros. Mas se alguma delas usou alguma medicação receitada por um médico logo recaem sobre ele as suspeitas da tragédia. É aquela história da azeitona da empadinha. O sujeito se droga, se droga e se droga, depois passa mal, é atendido por algum profissional de saúde que, ao prescrever uma medicação corriqueira qualquer, será tido como o responsável pela tragédia que vier a ocorrer.

Mas quem trabalha com emergências psiquiátricas está habituado a conviver com adversidades. Sabe que terá que fazer escolhas rápidas num ambiente quase sempre adverso, geralmente sem colaboração do paciente e sem possibilidade de exames. São situações nas quais as regras e protocolos não podem ser rígidos e onde o bom senso e a experiência do médico pesam mais que seus títulos acadêmicos. As reações inadequadas de familiares estressados são parte da rotina. E, como ocorre em todas as especialidades da Medicina, os resultados nem sempre são os esperados. Aí é que o médico tem de ter realmente um grande preparo pessoal e profissional para suportar as pressões e seguir em frente na carreira. Mas tudo isso faz parte do atendimento e o profissional que se habilita a exercer essa prática sabe dos riscos que corre.

O que há de se lamentar é a crítica oportunista feita pelos próprios médicos contra os colegas em momentos de dificuldades. Essa prática, que vem se tornando freqüente, em especial por profissionais ligados a instituições de ensino, além de revelar o caráter de quem as faz, cria na população e na mídia falsas expectativas sobre o poder curativo da medicina.

Na prática a teoria é outra, e o que parece perfeito na sala de aula, não raro, se mostra muito diferente no exercício prático da Medicina. No caso em questão, a remoção do paciente para uma clínica psiquiátrica não teria sido uma tarefa fácil e provavelmente impossível sem o uso de forte sedação. Também não impediria que o desfecho trágico pudesse ter ocorrido no hospital ou mesmo durante a própria remoção. Além disso, considerando a resistência do paciente em se tratar e sua falta de limites, talvez não fosse mesmo o mais adequado a ser feito. A opção de não medicá-lo seria um ato de omissão médica e o deixaria exposto aos riscos do surto psicótico em que se encontrava. Quanto às medicações utilizadas, são todas elas de uso corriqueiro no receituário psiquiátrico e, em geral, bastante seguras. Se foi ou não feita a melhor abordagem farmacológica é uma questão na qual as opiniões podem variar de médico para médico conforme a experiência de cada um e cujo debate somente deve ser travado eticamente e em ambiente científico.

O importante a ressaltar aqui é que o médico responsável não pode vender ilusões. A iatrogenia, que são os malefícios ao paciente provocados por qualquer intervenção médica, é responsável por um número significativo de complicações mais ou menos graves. É possível minimizá-la, mas impossível acabar com ela, mesmo nos melhores serviços. Os resultados dos procedimentos médicos são estatisticamente presumíveis, mas não garantidos, pois, como não conseguimos prever todas as variáveis, podemos acabar surpreendidos por reações orgânicas inesperadas.

Todo ato médico traz em si riscos. Por isso, atribuir sempre os insucessos a erros é iludir a opinião pública com a fantasia de um poder médico infalível e onipotente que existe somente na imaginação daqueles profissionais que não exerceram a Medicina o suficiente para se tornarem humildes. E que por isso se arvoram em juízes covardes daqueles que enfrentam o infortúnio por terem tido a coragem de se expor à real prática da Medicina.

*Médico Psiquiatra e diretor clínico do Espaço Holos. Artigo publicado pelo Jornal A Tarde em 31/01/2008