No mundo, a cada 40 segundos uma pessoa tira sua própria vida. Muitas dessas mortes poderiam ser evitadas através de um acompanhamento médico adequado.
Por mais estranho que possa parecer, pessoas racionais e em pleno gozo de suas faculdades mentais também cometem suicídio. O filósofo espanhol Sêneca (4a.C – 65 d.C) achou mais digno tirar a própria vida a viver no exílio. Essa ‘consciência’ também pode aparecer em quadros de doenças crônicas, como o ocorrido com a escritora inglesa Virgínia Woolf (1882-1941), que cometeu suicídio ao perceber que entraria em um outro nível de crise, pior do que a acometera na juventude, e decidiu que não enfrentaria esse sofrimento. Há, ainda, suicídios motivados por questões ideológicas, políticas ou filosóficas, como os camicases – japoneses suicidas da 2ª Guerra Mundial – e os atuais homens-bomba jihadistas.
Segundo especialistas, esses são os casos mais difíceis de prever e evitar, mas dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) atestam que apenas 2% dos casos se enquadram nessa categoria. Nas demais situações, nas quais os sintomas são mais evidentes e a ajuda profissional poderia ser acionada, os números mostram que o suicídio se tornou um grave problema de saúde pública, responsável por uma morte a cada 40 segundos no mundo, superando a soma de todos os óbitos causados por homicídios, acidentes de transporte, guerras e conflitos civis ao ano. No Brasil, pelos números oficiais, são 32 mortes por dia, taxa superior às vítimas da Aids e da maioria dos tipos de câncer.
Segundo a OMS, muitas pessoas que tentam tirar suas vidas ou já pensaram no assunto nunca procuraram ajuda e, por isso, não receberam o auxílio que necessitavam. Apesar do número alarmante, o problema ainda é tratado como tabu. Evitar falar sobre o assunto só colabora para aumentar seu estigma, garantem os especialistas. “Mesmos com os avanços científicos, a sociedade ainda trata o suicídio como algo vergonhoso, resultante de uma falência da responsabilidade pessoal, da coesão familiar ou do sistema social. Esta visão promove uma série de dificuldades na intervenção e na pesquisa desses casos”, alerta Dra. Fabiana Nery, psiquiatra da Holiste.
O comportamento suicida não é apenas uma resposta lógica a um estresse extremo, mas o desfecho trágico de doenças psíquicas, como transtornos afetivos, psicóticos e depressão. O uso abusivo de álcool e drogas, associado a esses transtornos, mostram grande relação com o suicídio; pesquisas alertam que entre 10% e 25% das pessoas com depressão tiram a própria vida. O acompanhamento médico adequado, com acolhimento e tratamento, pode evitar 90% dessas mortes, garantem especialistas.
“Muitas vezes a pessoa não quer, necessariamente, morrer, mas dar fim ao sofrimento. Ou seja, não é algo racional, sobre o qual ela pensa. Esse tipo de suicídio é possível de prevenir, uma vez que os pacientes que se encontram nesse estágio sempre dão algum tipo de recado. Eles sinalizam”, informa Dr. Vitor Pablo, também psiquiatra da Holiste. Os médicos têm um papel crucial nessa prevenção, cabendo a eles identificar, avaliar e manejar esses pacientes, tarefa fundamental para evitar atitudes extremas, conforme alerta Dra. Fabiana: “Não é fácil perguntar aos pacientes sobre suas ideias suicidas, mas devemos estar atentos aos que repetem, com frequência, o desejo de morrer ou vivem dizendo que não estão mais suportando o sofrimento. Normalmente, esses sinais chegam às famílias ou aos cuidadores. Essas atitudes são fortes indicativos e não podemos deixar de avaliar seu risco”.
COMPORTAMENTO SUICIDA
A psiquiatra esclarece que a tentativa de suicídio é definida como qualquer ato de ameaça à vida, cometido com a intenção de pôr fim a mesma. Trata-se de uma ação potencialmente letal, mas não bem-sucedida. “Esse tipo de comportamento engloba atitudes variadas, desde os atos mais simples de autoagressão e que não necessitam de atenção médica, até ações mais graves nas quais a hospitalização do paciente é necessária”, detalha a médica.
De acordo com a OMS, o suicídio está entre as três principais causas de morte na faixa etária de 15 a 44 anos. O número de pessoas que tentam cometer o ato é de 10 a 20 vezes mais frequente que o suicídio em si, realidade que causa impacto na sociedade. Por isso, as campanhas de conscientização, como o Setembro Amarelo são tão importantes. “Essas campanhas têm como objetivo esclarecer não apenas a sociedade em geral, mas o suicida em particular. É necessário, sim, falar sobre o assunto. Isso não vai induzir ninguém a se matar. Ao contrário, ajuda a pessoa a se sentir mais à vontade para falar de sintomas ou problemas pelos quais está passando e, dessa forma, procurar ajuda. O suicídio normalmente acontece num pico de emoção da patologia e um pequeno acolhimento pode mudar uma história”, adverte Dr. Victor.
André Dória, psicólogo da Holiste, esclarece que a prevenção pode ocorrer a partir do momento em que o médico e/ou psicólogo tratam alguém com sofrimento psíquico. No entanto, existem pessoas com dificuldades de transformar a dor em palavras e partem para atos extremos, muitas vezes atos suicidas, cometidos por impulso.
O psicólogo lembra que atitudes como essas são sinais de alerta para os especialistas perceberam o grau de risco. É o que eles chamam de Passagem ao Ato, quando a pessoa perde a capacidade de elaborar simbolicamente seu sofrimento e o produto disso é uma “ação às cegas”, em que a pessoa “apaga”, promovendo um ato que muitas vezes pode ser o suicídio. “O drama da passagem ao ato é a sua imprevisibilidade”, alerta o psicólogo. Em outra vertente está o que se chama de “acting out”, um ato que tem um endereçamento a outra pessoa, para despertar sua atenção. “A questão é que, em uma atuação supostamente suicida que deseja apenas comunicar algo a outra pessoa, o indivíduo pode perder o controle e de fato morrer”, descreve o psicólogo. “Uma pessoa que toma medicamentos supostamente para morrer, mas que com sua ação deseja enviar um pedido de socorro ao outro, chamar a atenção para o seu sofrimento, pode de fato morrer se a dose for letal”, adverte. Psiquiatras e psicólogos destacam que é importante conscientizar e treinar os profissionais da área de saúde que muitas vezes recebem, em seus consultórios ou nas emergências dos hospitais, pessoas que tentaram se matar ou que se feriram tentando. Geralmente, a única coisa feita com esses pacientes é o atendimento hospitalar padrão. “É preciso investigar as causas dessas ocorrências e encaminhar para um atendimento adequado”, orienta Dr. Victor.
PERFIL DO SUICÍDIO
Estudos apontam alguns perfis mais relacionados a ocorrências de suicídio. A prevalência se dá entre homens alcoólatras, solteiros, em situação financeira ruim ou desempregados, com isolamento social e dependência química. As ocorrências também apontam outros indicativos, como classe social mais baixa, mudança drástica de vida, histórico familiar de suicídio, pacientes urbanos e sem religião. Esses são os padrões encontrados na maioria das pessoas que tiram a própria vida.
“Esse padrão, associado a transtornos como bipolaridade, esquizofrenia e depressão, indica um paciente com alto risco suicida. Vai chegar um momento em que ele acha que não vai melhorar e que sua situação vai ser sempre essa. Ele começa, então, a planejar o fim da própria vida, porque acredita que nunca vai conseguir ter uma vida normal”, alerta Dr. Victor. As estatísticas mostram que os homens são mais vulneráveis do que as mulheres, o que pode ser explicado pelo fato delas se cuidarem mais e serem mais atentas à saúde, não só por elas mesmas, mas por outros fatores em jogo, como filhos e carreira profissional. “É mais fácil encontrar um homem bipolar tipo 2 na mesa de um bar do que em um consultório médico”, revela Dr. Victor.
SETEMBRO AMARELO
Segundo a OMS, o suicídio já é um problema de saúde pública em países de alta renda e cresce em territórios de baixa e média renda. Ainda assim, apenas
28 países relatam possuir estratégia nacional de conscientização, com medidas de vigilância, capacitação dos profissionais da saúde, educação, segurança pública e outras áreas, além de serviços de intervenção em casos de crises. Para ampliar o debate e promover o esclarecimento sobre o problema, a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) lançou, em 10 de setembro (Dia Mundial de Prevenção do Suicídio), o livro “Prevención de la conducta suicida”. A publicação, elaborada junto ao Instituto Nacional de Psiquiatria Ramón de La Fuente Muñiz, do México, reúne estratégias para a prevenção do suicídio nas Américas, e tem como foco o lema “cuidar”. A obra ainda destaca a importância de governos e prestadores de serviço de saúde priorizarem a prevenção, com o objetivo de sensibilizar a população e quebrar o tabu em relação ao suicídio.
Desde 2014 o Brasil conta com uma campanha de conscientização, o Setembro Amarelo. Essa é uma iniciativa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), do Centro de Valorização da Vida (CVV) e do Conselho Federal de Medicina (CFM). A campanha tem o objetivo de alertar a população a respeito da realidade do suicídio no Brasil e no mundo, e suas formas de prevenção.