O suicídio é um ato complexo que acompanha a humanidade desde as sociedades mais antigas. O psiquiatra Victor Pablo trata do tema em seu artigo intitulado “O Sentido do Ser”, realizando uma narrativa sobre as mudanças do significado do suicídio em diversos momentos da sociedade e a forte relação do ato com o contexto social.
Leia o artigo publicado na Revista Outside.
A natureza do ato suicida nas sociedades antigas ou civilizações com vigoroso código de valores possuía um sentido mais ritualístico, honroso e calculado. A ação de pôr fim a própria vida remonta rituais fúnebres milenares de famílias egípcias e indianas, após a morte do patriarca; suicidar-se também se tornara o desdobramento natural quando se extinguia o protagonismo social, como o que ocorria às idosas concubinas chinesas e aos patrícios romanos que se tornavam decadentes ou molestos desonrados. Nas civilizações da antiguidade, estar vivo não se descolava da identidade de grupo. Não era adequado continuar existindo quando a utilidade aos seus conterrâneos se perdia ou se tornava perigosa.
A partir da consolidação dos valores da Reforma e do Iluminismo, houve um natural processo histórico de dissolução dos tradicionalismos após a Revolução Francesa. A Igreja, o Estado Aristocrático e a família deixaram de ser entidades de referência para o indivíduo. Nos últimos 200 anos, o suicídio passou a ser um fenômeno eminentemente individual, com menor influência de fatores culturais e maior influência do adoecimento mental.
Em mais de 90% dos suicídios consumados detectamos fortes indícios na história emocional e comportamental recente do indivíduo, traços de transtornos impulsivos, abuso de substâncias psicoativas e alterações de humor graves, entre estes últimos a predominância da depressão maior. O fenômeno suicida não pode ser reduzido apenas a uma condição médica, são várias engrenagens de uma reação em cadeia que conduz à ação extrema de querer estancar um mal-estar tão profundo. O aspecto médico do adoecimento mental junta-se a diversas outras variáveis pessoais, como mudanças na vida e novos eventos estressores.
Em seu ensaio de 1897, o sociólogo Émile Durkheim observou um aumento das taxas de suicídio na Europa continental paradoxal à prosperidade das nações e concluiu, após o levantamento de farta bibliografia, que haviam fatores extra-sociais os quais ele não possuía a devida expertise para avaliar, mas que eram ubíquos e provavelmente vesânicos (psicopatológicos). Entretanto, o fenômeno, que chamou de anomia social, parecia estar favorecendo aumentos inéditos das taxas. Esse termo diz respeito à diminuição da coesão social e o aumento do individualismo na Revolução Industrial; ao final, inclusive, acrescenta um aconselhamento para que fossem mantidos alguns ciclos de produção de riqueza regionais, uma “descentralização da hierarquia profissional” para que os “sujeitos não ficassem como moléculas soltas pelo ar”. Segundo sua perspectiva, isso poderia melhorar a sensação de pertencimento do indivíduo a uma territorialidade (identitária), um possível fator de proteção das pessoas com adoecimento mental.
Por ano, em todo o mundo, 900 mil pessoas desesperadas se entregam a esse fluxo de destruição desnecessário, estéril e solitário. Algumas poucas vezes deixam cartas suicidas com curtos parágrafos de agradecimento, pedidos de perdão e doação de objetos pessoais. Adeuses plenos de sentimento e sem nenhum romantismo: as palavras são áridas, lacônicas e decididas.
Mas, a sociedade está se tornando mais esclarecida e sensível para o acolhimento dos sinais que são emitidos meses antes. Aproximadamente 20% das pessoas, em algum momento de suas vidas, pensará em suicídio.
Nos EUA, os programas de prevenção ao suicídio têm contribuído para reduzir as taxas de suicídio na faixa etária entre 15 e 29 anos, onde ele é a terceira maior causa de morte. No Brasil, a mesma taxa aumentou 10% entre 2002 e 2014. Por conta disso, a campanha do Setembro Amarelo realizou algumas das primeiras atividades em 2015, mobilizada pela CVV e ABP (Centro de Valorização da Vida e Associação Brasileira de Psiquiatria).
A vida em grandes centros urbanos aumenta a pressão pela performance e proporciona o distanciamento entre as pessoas, isso favorece maior gravidade de quadros depressivos e psicóticos e por consequência maior risco suicida. A pandemia do abuso de substâncias psicoativas (drogas) em adultos jovens e o esvaziamento das perspectivas de autonomia psicossocial também influenciam.
Cada indivíduo pode se tornar um agente de acolhimento, abordando de forma empática as pessoas que apresentem mudanças comportamentais como retraimento social, queda da produção e negligência do cuidado da aparência. Demonstrar interesse facilita o desenvolvimento da conversação e aos poucos se sentirão mais à vontade para falar a respeito de impressões pessoais mais pessimistas, intenções sombrias como a falta de vontade de continuar com seus planos, o desejo de “entregar os pontos”, “jogar a toalha”, sumir por alguns dias ou “desaparecer do planeta Terra”, expressões que podem refletir uma contemplação ou plano suicida. Uma intervenção espirituosa breve presencial pode reduzir bastante os riscos de passagem ao ato do extermínio próprio, gesto que está longe de ser um desfecho romântico ou heroico para um sofrimento pessoal.