Pablo Sauce discute os méritos da PEC 181/15, que passa a criminalizar o aborto no Brasil, independente de qualquer circunstância. Em artigo publicado hoje no Jornal Atarde, o psicólogo questiona o “paternalismo proibicionista” que anula qualquer decisão da própria mulher em relação ao assunto. Leia o artigo completo.
No século XIX, o Dr. Samuel A. Cartwrigth, de Luisiana, propôs um diagnóstico denominado de Drapetomania (drapetes, “fugitivo [escravo]” e mania, “loucura”), um transtorno particularmente identificado nos escravos das plantações, caracterizado pela tendência de fuga “sem razão aparente”. Um século depois, na primeira edição do DSM-I (1952), a homossexualidade foi incluída entre os transtornos sociopáticos da personalidade, como um desvio sexual envolvendo comportamento patológico. Seguindo essa linha de “ficção científica”, é possível que no século XXI, com o DSM-VI, as mulheres que interrompam a gestação passem a ser diagnosticadas com um “Transtorno da Concepção”, por exemplo.
A “semente” que me levou à reflexão provêm da PEC 181/15, que proíbe o aborto sob qualquer circunstância em nome do “direito à vida…desde a concepção”. Nessa PEC, uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados apresentou um texto que, se aprovado, modifica a interpretação das leis e portarias que hoje autorizam os serviços de aborto legal no Brasil.
Atualmente, o direito ao aborto legal no país está previsto em três casos: gravidez originada de estupro, anencefalia do feto e risco à vida da gestante. Se a emenda constitucional for aprovada sem modificação, a permissão legal de abortos em caso de estupro ou de risco de morte para a mãe poderá ser anulada, obrigando a mulher a aceitar esse “presente”. Em princípio, só seria alterado o inciso 18 do artigo 7º da Constituição – aumentando a licença maternidade em caso de parto prematuro – o que beneficiaria as mulheres. No entanto, foram colocadas duas armadilhas: no inciso 3 do artigo 1º a frase: “dignidade da pessoa humana desde a concepção”; e no artigo 5º “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”. A partir desta mudança, o direito à maternidade vira um dever incondicional que independe das circunstâncias, tanto como anula, a priori, qualquer querer da mulher a esse respeito.
Em nome de um paternalismo proibicionista, os autoproclamados porta-vozes do embrião pretendem calar a voz das portadoras-de-embriões na hora de decidir o que fazer com o que foi imposto a elas sem prévio consentimento, empurrando qualquer decisão contrária para o âmbito do crime. Por isso, descriminalizar o aborto significa não só retirá-lo da instância criminal, mas retirar o peso que isso tem para a sociedade em geral e para as mulheres, em particular.
A sua legalização, em um horizonte mais distante, possibilitaria regulamentar a realização de abortos no Brasil, mantendo as portas abertas para a criação e manutenção de serviços especializados, onde a mulher possa ser encaminhada e acompanhada por médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais para, só depois, decidir sobre a interrupção da gestação. Quando não consentida, a concepção pode ser um ‘presente de grego’ e a emenda sair pior do que o soneto.