A Residência Terapêutica da Holiste é um serviço de moradia assistida voltado para pacientes com transtornos mentais crônicos – pessoas que tiveram seus laços sociais e familiares afetados por conta do adoecimento.
“Além de constituir um lugar de moradia para o paciente crônico, a Residência Terapêutica é uma nova referência de lar, de convivência, de construção de laços e cuidados. É um diálogo constante entre o morar e o cuidar”, define Lucielma Cruz, terapeuta ocupacional.
O trabalho realizado pela Residência Terapêutica é o tema do nono vídeo da série Desmistificando a Saúde Mental. Participam do vídeo Caroline Severo (psicóloga), Isabel Castelo Branco (Acompanhante Terapêutica), Lucielma Cruz (Terapeuta Ocupacional) e Livia Castelo Branco (psiquiatra).
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PREJUÍZOS CRÔNICOS
Doenças crônicas são aquelas com as quais o paciente precisa conviver, praticamente, por toda a vida – como no caso da diabetes, hipertensão, etc. Mas, quando falamos em transtornos mentais crônicos, estamos falando não apenas dessa característica, mas de um agravamento do adoecimento.
“Estamos falando de quadros muito mais graves, que levam a um comprometimento muito maior do indivíduo em termos de funcionamento, trabalho, interação social. Este quadro tem como consequência a segregação, o agravamento de doenças clínicas, a redução da qualidade de vida e o risco de morte precoce.
Outra característica presente é a baixa remissão dos sintomas psiquiátricos, ou seja: os sintomas continuam, a despeito dos tratamentos farmacológicos ou não farmacológicos. Portanto, esses pacientes precisam de um acompanhamento muito mais intensivo”, explica a psiquiatra Livia Castelo Branco.
O quadro crônico fragiliza os vínculos nas relações – sociais e familiares – e prejudica a autonomia. Isso traz um impacto muito grande na forma com a qual esse paciente lida com questões diversas em sua vida e relações, acarretando em necessidade específicas no suporte na organização das rotinas e autocuidado.
“Em um nível crônico da doença, a pessoa começa a ficar enclausurada e ensimesmada por conta do impacto dos sintomas da doença, que vão empobrecendo o sujeito. Nesses casos, passa a ser necessário buscar uma intervenção para além da medicação e dos tratamentos convencionais. Essa é a proposta do conceito de moradia assistida.” destaca Isabel Castelo Branco, AT e coordenadora da Residência Terapêutica da Holiste.
RECONSTRUINDO O COTIDIANO
A construção do conceito de lar, para os moradores da Residência, passa a ser um desafio diário que demanda investimentos constantes para entender os potenciais e desejos individuais, contribuindo para uma adaptação a essa nova forma de se relacionar com o mundo e com as pessoas.
“Lá é a casa deles. A equipe atua para facilitar essa nova percepção, um trabalho de resgate de fato desse sujeito. É um processo longo, porque por muito tempo a rotina dele foi feita por outras pessoas, seja na família ou em outras instituições, muito por conta desse olhar que o paciente com transtorno mental não pode fazer – eles absorvem muito esse pensamento de que eu não posso, eu não consigo, alguém tem que fazer por mim. A frase que a gente usa é: “vamos fazer junto com você”, um processo que por vezes é doloroso para o paciente, porque essa rotina, esse cotidiano, foram perdidos no processo de adoecimento”, reflete Isabel Castelo Branco.
“O que para nós pode parecer muito banal ou imperceptível, para o paciente crônico pode fazer muito sentido. Até atos mais simples como sentar em uma mesa para fazer uma refeição, fazer um pedido ao garçom, ter uma postura adequada, manejar adequadamente o talher, se relacionar com outras pessoas na mesa e no ambiente, todas essas ações tornam o momento importante, simbólico. Ir comer em um café, uma torta, ser respeitado naquele espaço, ter atendida a sua necessidade, seu desejo e ser tratado de uma forma digna. Isso é compartilhar, isso é conviver”, completa Lucielma Cruz.
Um grande recurso da Residência são as saídas, acompanhadas ou não, que fazem parte do dia-a-dia dos moradores. Desde uma caminhada na praça à ida a um supermercado ou padaria, cortar o cabelo ou fazer as unhas, ir ao médico, etc., são ações que estimulam a sociabilização dos moradores.
“A ideia da sociabilização vai além de estimular o convívio e a comunicação, tem de criar novos processos de subjetivação e de se sentir pertencente ao seu mundo. A territorização com o próprio bairro, de fazer compras no supermercado, de ser conhecido na banca de revistas, faz com que eles tenham uma sensação de pertencimento ao bairro e àquela sociedade”, destaca Caroline Severo, psicóloga e coordenadora da Residência Terapêutica da Holiste.
UM TRABALHO COLETIVO
Pensando nas muitas variáveis a serem trabalhados, se faz necessária uma equipe multidisciplinar formada por psicólogo, terapeuta ocupacional, acompanhante terapêutica, além do suporte com o psiquiatra e clínico geral, nutricionista, equipe de enfermagem 24h, rede de apoio de cuidadores para dar sustentação a rotina da residência terapêutica.
“O coletivo da equipe e as discussões compartilhadas são muito costuradas, nosso foco é o cotidiano é a moradia desse sujeito. A psicologia vai trabalhar a subjetividade desse sujeito, mas inserida em um contexto que ele consiga se implicar no cotidiano; a terapia ocupacional trabalha com as atividades diárias, o acompanhamento terapêutico”, explica Isabel Castelo Branco.
Caroline Severo completa, explicando a importância da individualização no processo: “Não é um tratamento igual para todos, serão trabalhadas as questões que são mais importantes para esse sujeito especifico, independente do diagnóstico. É tudo dentro das potencialidades de cada um, do que podemos explorar para remodelar a condição daquele sujeito.
O trabalho multidisciplinar é muito importante. O fato dos profissionais terem perspectivas diferentes viabiliza novas possibilidades de abordagem. Algo que não se revela no atendimento psicológico pode aparecer em uma simples ação do cotidiano mediado pela TO, e a partir disso a gente traz para o foco do projeto terapêutico”.
RECONSTRUINDO LAÇOS FAMILIARES
Muitos moradores têm relações difíceis com a família, por conta dos laços que foram desgastados ao longo dos anos. O afastamento se deu, muitas vezes, pela dificuldade de entender que aquele comportamento disfuncional era resultado de uma doença, não um traço de personalidade.
“Quando a gente fala de um paciente adoecido, a gente também está falando de uma família adoecida, pois ela adoece no processo. Mas a gente esclarece, muito, que a residência não é um lugar de abandono; a residência é um lugar de cuidado, que vai ser compartilhado com a família. A gente entende que há uma fragilidade do vínculo, entende que existe uma dificuldade do paciente ressignificar seu espaço e suas relações, mas a gente está em um lugar diferente, não de abandonar, mas de investir nesse paciente”, destaca Caroline Severo.
“A gente promove algumas atividades, na residência, para a família estar presente compartilhando aquele espaço. Estimulamos as licenças para que esse laço vá se fortalecendo a cada momento. Mas, também, respeitamos as dificuldades de cada um. Então, o processo de ressignificação e da convivência familiar se dá de forma cuidadosa, respeitando tanto os limites do morador, como da família”, acrescenta Lucielma Cruz.
INVESTINDO NO INDIVÍDUO
A relação que o indivíduo estabelece com seu adoecimento é algo que demanda uma grande atenção. A pessoa passa a se perceber apenas através do seu diagnóstico. Isso traz uma grande alienação e um empobrecimento em sua forma de pertencer ao mundo.
“A partir do momento que a gente conversa com o paciente – de acordo com sua capacidade de entendimento – sobre o que é essa doença e quais são os sintomas, os pacientes vão se identificando, vão aprendendo e ficando mais tranquilos em relação ao próprio sintoma.
Quando falamos em um transtorno mental crônico e grave, as pessoas tendem a pensar nas piores coisas possíveis: a vida acabou, a relação com família acabou, as expectativas com o futuro. Mas, quando falamos em residência terapêutica, a gente está pensando que existem possibilidades, que aquele individuo pode ir além, pode ter uma voz dentro da sociedade, conviver com as pessoas, ter uma vida que demanda supervisão, mas que também tem autonomia”, finaliza Livia Castelo Branco.