A relação do indivíduo e a construção de sua autoimagem na modernidade é o tema do artigo da psicóloga Caroline Severo publicado no jornal Correio.
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Desde o primeiro momento da nossa existência, somos atravessados pela relação entre o nosso “ser” e a imagem que o representa. A mãe, ao idealizar a imagem do seu filho que está por vir, “aliena-o” à sua própria fantasia. É a partir dessa imagem idealizada que a criança inicia o desenvolvimento de sua identidade. Ou seja: crescemos e nos reconhecemos através do olhar e desejo do outro. Com o passar do tempo, a criança começa a se descobrir e a relativizar a sua autoimagem.
Da experiência primordial com a idealização do outro, tido aqui como um “espelho” que nos fornece a nossa primeira imagem, Lacan afirma que a função dessa fase é estabelecer a relação entre o sujeito e a sua realidade. Dessa forma, quando falamos da construção da autoimagem, é necessário entender que o modo como cada indivíduo é visto interfere em suas relações com o mundo, com as outras pessoas e também consigo mesmo. Apesar de compartilharmos diversas experiências em comum, essa construção da autoimagem é sempre única e individual.
Um dos grandes enigmas da modernidade aparece na radical mudança de paradigma na relação do indivíduo com sua autoimagem. Os imperativos atuais, que passam pelo fenômeno do ser e estar no mundo virtual, alterou a lógica do reconhecimento próprio e por vezes provocam sofrimento nos indivíduos. Podemos dizer, então, que a mãe deixa de ser o outro em nossa relação com o espelho, “substituído” pelo Black Mirror, fazendo uma analogia ao seriado britânico de enorme popularidade mundial, onde imperam as relações e contradições morais de nosso tempo. Porém, o que se vê refletido no espelho negro revela quem de fato somos?
O espelho negro revela uma visão distorcida que atravessa as relações e exigências com o corpo e com os nossos desejos. Em um dos episódios de Black Mirror, uma garota busca de forma incessante ser aceita e reconhecida pelas pessoas que a cercam (a maioria desconhecidos), e a maneira de medir sua aceitação na sociedade se dá a partir da quantidade de “likes” que ela recebe em um aplicativo. A jovem se desespera a ponto de enlouquecer por estar perdendo o seu “status” e, por consequência, seu pseudo universo estaria escorrendo pelas próprias mãos.
As formas forçosas de alienação têm custado o distanciamento ou mesmo o estilhaçamento da autoimagem. Afinal, o que estamos dispostos a arriscar para sermos vistos em nossa relação com o outro? Ser visto, de fato, pode nos levar ao reconhecimento pelo outro? O espelho negro não demonstra quem realmente a pessoa é, mas o reflexo, muitas vezes obscuro e oco, de uma exigência de plenitude e extravagância, uma busca incessante e incansável por ser visto e, principalmente, reconhecido.