O grande desafio do tratamento em saúde mental é fazer com que os pacientes não apenas retomem suas vidas, mas sejam respeitados como cidadãos. O uso do território como ferramenta terapêutica tem papel fundamental nesse processo de integração.
Durante muito tempo, o tratamento dispensado às pessoas com transtornos mentais foi o da exclusão e segregação, sem qualquer direcionamento para a busca pela autonomia, contato com a sociedade, com a comunidade e tão pouco com o território no qual estão inseridas. Hoje, o que se preconiza na saúde mental é que os serviços precisam ter base territorial, partindo do princípio de que é necessário resgatar a história e a cidadania do paciente, entender que o sofrimento dele é algo que precisa ser tratado e não apenas instituído como política.
Nesse contexto, o território terapêutico se caracteriza não apenas como um espaço geográfico, mas de troca, de relações. Para ter sucesso, esse trabalho precisa promover a valorização do paciente como cidadão, que começa por ele mesmo se reconhecendo como sujeito e entendendo que está em tratamento. Segundo Itatiara Xavier, terapeuta ocupacional do Hospital Dia da Holiste, o conteúdo manifestado no território externo muitas vezes é maior do que o conquistado dentro das quatro paredes da instituição. O contato com os espaços abertos permite que a associação livre do paciente se manifeste através do contato direto com a realidade, o que instiga as emoções, diferente do espaço fechado onde, de um modo geral, isso precisa ser provocado.
“Observamos isso com o recurso da fala – simbolizando questões internas e próprias de cada um – e da escuta clínica para detectar o paciente que, apesar de adoecido ou limitado, pode resgatar sua memória, suas lembranças e redimensionar o significado disso”, esclarece.
Hospital dia e seu território terapêutico
O Hospital Dia da Holiste (HD), localizado na Pituba, tem ao seu redor uma vasta opção de espaços de lazer e serviços, que hoje integram a dinâmica terapêutica de seus pacientes. A ideia de utilizar estes territórios começou com as caminhadas diárias feitas pelos pacientes nas redondezas. Aos poucos, a equipe percebeu como cada um se relacionava com esse território e o potencial que isso representava para o tratamento. Entender como esse recurso pode ser terapêutico, à medida que seja sustentável e orientado junto com a equipe, é o principal conceito dessa proposta. Com essas ações foi possível resgatar a autonomia desses pacientes e de seus direitos como cidadãos.
Os ganhos são muitos, conforme explica a terapeuta Lívia Brandão, membro da equipe que planeja e acompanha essas ações. “Os pacientes começam a desenvolver sua autonomia e atitudes que estavam esquecidas em função do adoecimento. Aos poucos, conquistam autoestima e segurança, pois percebem que podem se relacionar sem desconfiança ou preconceito, tanto por parte deles quanto por parte da comunidade”.
Além dessas conquistas, surgem outras, menores, mas não menos importantes, como uma melhor coordenação motora e postura corporal, ganhos que vão sendo conquistados à medida em que as atividades externas se consolidam no tratamento. “Eles percebem que estão sendo incentivados a andar com suas próprias pernas e se sentem muito motivados. É como se fosse um filme em que o paciente deixa de ser coadjuvante para ser o ator principal. Ele se coloca na cena e é esse direcionamento que promove o efeito terapêutico. Deixá-lo tomar a iniciativa, incentivá-lo a querer e mostrar que ele pode conseguir”, explica o psicólogo Ueliton Pereira, coordenador do HD.
Atividades no território
As atividades territoriais seguem uma dinâmica que pode envolver, também, atividades internas do HD, como a oficina de culinária, cuja terapêutica se restringia apenas ao ambiente institucional e que agora foi incorporada ao território geográfico. Tudo que é usado na oficina é adquirido no comércio local, com o envolvimento dos pacientes em todas as fases, da escolha do cardápio à compra dos ingredientes. Com isso, desenvolvem o estímulo cognitivo, desenvoltura, noção de quantidade, de peso e valor monetário.
A rotina também inclui a prática de esportes no espaço público, como o futebol, eventos temáticos como piquenique, festas de São João e Carnaval realizados na praça, passeios a museus, praias e shoppings, atividades que ampliam o cenário territorial. “No nosso último piquenique, para celebrar a chegada da primavera, cada um deles se envolveu de alguma forma. Alguns preparam a comida, outros fizeram artesanatos comemorativos desenvolvidos a partir do que aprenderam nas oficinas. Ou seja, é o território terapêutico ampliado a partir das relações internas”, comenta Itatiara. Faz parte do processo observar e desenvolver regras sociais, como atravessar a rua, observar a faixa, olhar para os lados, acompanhar o semáforo, entrar na fila para esperar ser atendido, trabalhar a disciplina, a paciência e o controle da ansiedade, sempre orientados e observados pela equipe.
“O que torna a atividade terapêutica é a possibilidade das transformações que os profissionais percebem e avaliam, mesmo que o momento seja apenas de lazer. Estamos preparados para observar como um estímulo chega ao paciente, trazendo lembranças que podem ser boas ou ruins, e perceber o efeito que isso vai causar. A partir daí, decidimos se devemos aceitar ou impedir que aconteça”, explica Itatiara.
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A família e a terapêutica
Todas as atividades externas do HD, mesmo um simples passeio na praça, precisam ser autorizadas pela família. No início, os familiares tendem a ficar receosos com as saídas, mas, ao longo do tratamento, reconhecem que elas foram importantes ferramentas para o desenvolvimento do paciente.
Alguns indivíduos chegam ao hospital dia sem qualquer autonomia, por estarem limitados e protegidos excessivamente por suas famílias, que apenas têm o intuito de ‘preservá-los’. O trabalho de uma equipe de profissionais especializados é capaz de orientar o paciente em direção à autonomia necessária ao seu desenvolvimento, sem deixá-lo desprotegido. Nessa fase, o trabalho da equipe também envolve orientar e esclarecer a família, tranquilizando seus integrantes e apontando até onde a proteção é benéfica ou prejudicial para o desenvolvimento do paciente. O trabalho de sensibilização prevê, ainda, a indicação dos ganhos que podem surgir com essas ações e a leitura do relacionamento entre a família e o paciente.
A próxima etapa envolve o resultado dessas ações, a orientação e o apoio para a família que terá que lidar com o paciente, agora uma nova pessoa, mais autoconfiante, responsável e independente. Muitas vezes as famílias não dão conta, sozinhas, de lidar com esse “novo” membro, sendo fundamental a interferência da equipe para ajudá-los a restabelecer as relações, laços e vínculos. “Se já é difícil para o paciente lidar com seus problemas, imagine para a família, que tem que se relacionar com uma nova pessoa. Nossa orientação é no sentido de esclarecer que essa relação se modificou, mas não acabou. O paciente continua adoecido, mas com novos horizontes os quais a família não imaginava serem possíveis, demorando, muitas vezes, a se adaptar”, esclarece Lívia.
“Apostamos na importância do uso cada vez mais frequente do território por parte do nosso serviço de saúde mental, com o objetivo de transformação consciente do cotidiano. O cotidiano é o lugar das pequenas revoluções e transformações que induzem a processos de apropriação, de condução da vida, traduzidas em autonomia, liberdade de escolha, flexibilidade nos padrões de pensamentos, sentimentos e ações”, conclui Ueliton.