O diretor clínico da Holiste e psiquiatra, Luiz Fernando Pedroso, fala sobre fanatismo religioso e saúde mental, em entrevista ao programa Mojubá, da rádio Metrópole.
O caso de uma menina de 10 que engravidou após ser estuprada e, ao utilizar seu direito de fazer um aborto, foi confrontada por manifestantes, chocou o Brasil e levou a questionamentos sobre a fé ou convicção ideológica que faz com que pessoas considerem poder interferir em uma situação particular e íntima.
O psiquiatra Luiz Fernando ressalta que, além das questões psicológicas que se apresentam nos casos de fanatismo, existe um fenômeno social que colabora para que essas intervenções na intimidade do outro ocorram.
“É a violência em cima da violência. A menina vive uma situação já muito delicada e outras pessoas invadem o espaço privado dela em função de projetos políticos ou religiosos. É um fenômeno complicado, porque ele abrange tanto a questão psicológica, quando questões culturais. E hoje vivemos em uma sociedade muito autoritária, onde as pessoas não têm pudor para intervirem na intimidade dos outros”, aponta.
Ouça a entrevista:
Liberdade X Crenças
Quando se fala em crença religiosa, faz parte da liberdade democrática o direito de cada um ter suas próprias convicções. O problema começa quando um grupo de pessoas que compartilha a mesma fé, munido de uma suposta superioridade moral, acredita ter o direito ou até o dever de dizer ao outro o que ele pode ou não fazer. Para Luiz Fernando, essa postura está presente na sociedade brasileira.
“Não se pode responsabilizar uma ou outra pessoa por um ato desses, nem mesmo uma ou outra religião, pois isso está muito entranhado na nossa cultura, essa ‘falta de cerimônia’ em opinar e intervir na vida do outro. O estado que é de todos não pode se tornar religioso, ao contrário, ele tem que permitir a expressão de todas as manifestações. Porém, não é de hoje que esses grupos tentam impor seus valores e desrespeitam os limites da individualidade, sob argumentos variados”, afirma.
Perda da realidade
O diretor clínico da Holiste aponta que o fanatismo religioso é um quadro que fica no limite entre a convicção e o delírio, fazendo com que a pessoa perca a crítica da realidade, se vendo de forma messiânica, como se tivesse uma missão a ser cumprida.
“A base disso normalmente é um pensamento paranoico, sendo que a pessoa idealiza o mundo entre o bem e o mal. Isso pode chegar ao delírio pleno a partir de patologias da personalidade. É normal termos convicções, mas quando elas chegam a um determinado ponto de acirramento, de confronto com dados da realidade, o fanatismo pode se tornar um delírio crônico, com a pessoa imaginando que está salvando o mundo”, explica.
Como identificar problemas
Luiz Fernando avalia que o fanatismo religioso é um fenômeno multifatorial – ou seja, não apenas psicológico, embora seja possível identificar alguns traços que podem indicar que o problema se tornou patológico.
“A religiosidade é um aspecto normal e saudável da vida e, como tudo, quando praticada com razoabilidade, é positivo. O que deve chamar atenção e indica um comportamento patológico é a irrazoabilidade, aquilo que transcende os limites do bom senso, quando a pessoa passa a viver sua religiosidade como se não houvesse mais nada na vida. Então, começamos a pensar que papel essa religiosidade tem, o que está substituindo de sensações internas de incapacidade, de depressões e outros”, detalha.
O diretor clínico da Holiste acrescenta, porém, que, nos casos de comportamentos coletivos, não se pode atribuir tudo ao âmbito da saúde mental.
“Devemos deixar claro que, no caso de uma ‘turba’ como ocorreu nesse episódio da menina, temos pessoas fanáticas, que podem estar precisando de ajuda, porém também temos os oportunistas, os carreiristas políticos que querem se promover, elementos que já transcendem o que a psiquiatria pode fazer e entram na esfera do que a sociedade deve fazer para colocar os seus limites”, pontua Luiz Fernando.
Conflito social
O psiquiatra enfatizou ainda que o fanatismo, seja religioso ou político, tem um importante impacto social, quando pessoas partem para conflitos em função de suas convicções, associadas aos interesses de alguns grupos. Ele percebe que o momento atual da sociedade brasileira tem peculiaridades que podem levar ao embate.
“Uma delas é que estamos numa situação social complicada, de muitos radicalismos religiosos e políticos, e, como agravante, temos a ausência da figura do árbitro. É como se houvesse um jogo de futebol sem juiz, porque ele decidiu entrar no jogo para torcer para um time ou para fazer gol. Temos hoje um Supremo Tribunal Federal politizado, tomando lados em vez de arbitrar”, opina.