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A geração glúten-free, no-lac, e os sintomas atuais | Por Rogério Barros

rogerio barros

Diariamente, somos bombardeados pela mídia com o lançamento de produtos livres de glúten e com zero lactose, acompanhados da promessa de uma vida saudável e mais sustentável. Imbuídos do ideal que articula a beleza à barriga negativa, nos interrogamos: de que serve esse novo modelo de saúde, quando aquilo que consideramos saudável encontra-se cada vez mais encarcerado sobre a suposta boa forma do corpo?

De partida, é importante pontuar que a voracidade com que nos apegamos a qualquer ideal marca a nossa posição primordial de desamparo. É porque estamos sempre à beira da angustia que a oferta de modelos nos soa como uma solução eficaz para nos aliviar. Nessa direção, não há dúvidas de que o mercado glúten-free e no-lac é lucrativo. Mais que propagar uma plataforma de saúde que beneficiaria toda uma população, o extenso número de produtos ofertados sob a rubrica “saudavelmente correta” obedece a lei de mercado que, como tal, depende de consumidores ávidos por qualquer coisa que ponha fim a uma falta por eles sentida.

Na atualidade, essa falta pode vir sob a roupagem do shape corporal adequado, do qual carecemos, ou da alimentação da moda que devemos seguir, mas à qual ainda não nos adequamos. Nessa perspectiva, não é raro questionar um comprador comum de queijo sem lactose sobre o motivo da sua compra e não obter uma resposta razoável que a justifique. Se o slogan enjoy coca-cola enfeitava os outdoors nos anos noventa, atualmente podemos dizer que a formula enjoy (x) coloca qualquer objeto na prateleira, marcando a nossa posição de consumidos pelos objetos, e não o contrário. Escravizados pelo temor da angústia, seguimos formulas standart como modo de evitar o mal-estar.

A forma como somos capturados pelo fetiche contemporâneo do consumo de saúde nos permite, sutilmente, desvendar uma nova subjetividade que marca os sintomas da contemporaneidade. Nunca foram tão presentes nos consultórios pacientes as voltas com o corpo próprio, como são os casos de bulimia, anorexia, ortorexia, dor crônica e desmorfofobia.

Esses casos atuais nos permitem marcar uma diferença crucial na demanda clínica: se antes se buscava um tratamento psi devido aos impasses frente o alcance da felicidade, hoje são questões frente ao corpo que se apresentam preponderantes. O que se silencia, aí, não é outra coisa que não o desenlace frente ao outro – e especialmente ao amor e suas nuances – já que o chamado amor próprio parece estar definido no espelho. Disjuntos do amor que se faz na relação com o outro, esses sintomas contemporâneos desvelam cada vez mais o seu caráter narcísico e solitário.

Antes de consumir produtos glúten-free e no-lac, não seria de mau tom nos interrogar a quem serve esse imperativo atual. Já estamos vacinados de que tudo aquilo que nos surge como obrigatório no carrinho de compras pode servir ao silêncio da nossa solidão, encarcerada no corpo. Podemos fazer do consumo outro uso: nunca será de todo ruim que a bela forma possa servir às artimanhas da sedução. Assim, mais além do espelho, o corpo em jogo pode nos dirigir ao amor, que será sempre um modelo mais eficaz de tratamento.

 

*Rogério Barros, psicólogo assistente da Holiste.